Vidas negras importam, sim!

Hugo Gonçalves

Salvador, maior cidade negra fora da África, 4 de junho de 2020

Artigo atualizado em 5 de junho de 2020, às 16h11


Em diversos protestos pelo mundo contra assassinato de George Floyd, como em Minneapolis (foto acima), nos EUA, palco do covarde episódio, ativistas ostentam cartazes e faixas com o lema do movimento antirracista, Black lives matter – em português, vidas negras importam

Lindsey Wasson/Reuters


O brutal episódio que culminou na morte de um indivíduo negro pela polícia nos Estados Unidos é a prova de que a antiga questão do racismo permanece intocada no complexo e desafiador arcabouço da sociedade mundial. Atitudes preconceituosas e ofensivas, a exemplo desse caso manifestado há uma semana que colocou o planeta em estado de agonia, transparecem o fato de a população negra estar entre os grupos enquadrados como extremamente vulneráveis a uma perversa sequência de injustiças que acometem a humanidade.

Casos como o do ex-segurança George Floyd, assassinado em 25 de maio último na cidade de Minneapolis, estado de Minnesota, aos 46 anos, não são novidade. Desde a escravidão, e mesmo no período sucedâneo à Guerra Civil Americana, sempre houve atrocidades praticadas por supremacistas brancos em detrimento dos homens e mulheres negros. Na qualidade de inferiorizados, muitos afro-americanos foram e continuam sendo submetidos a dolorosos e violentos mecanismos que os tornam excluídos da civilização.

Em paralelo, lamentavelmente, eles prosseguem convivendo com o antiquado problema da miséria, em combinação com a desigualdade de renda, explicitada no famoso abismo divisório entre ricos e pobres. Diante de ideologias e metodologias retrógradas, ser negro na maior potência e sede do capitalismo global contemporâneo não é nada fácil. Lá, como aqui no Brasil, grandes contingentes de cidadãos pertinentes a essa minoria também sentem na pele o crônico fantasma do desemprego e não possuem teto para morar, deixando-os abandonados à própria sorte nas vias públicas.

Uma vez que o caso Floyd adquiriu massiva repercussão na imprensa e nos demais segmentos da sociedade internacional, esse ataque cometido em nome da hegemonia branca e eurocêntrica, que de tão trágico já é considerado crudelíssimo, foi o estopim para que, graças à monumental proporção e ao extraordinário impacto da sua propagação, protestos de repúdio ao sacrifício criminoso do ex-segurança se replicassem em outras cidades dos EUA, epicentro do movimento, e por diversas regiões do planeta, como em países da Europa e até da nossa Mãe África.

Nas mobilizações antirracistas, ocorridas mesmo em tempos de pandemia, populares aglomerados – alguns deles usando máscaras – vêm ostentando cartazes e faixas, com predomínio soberano dos dizeres Black lives matter (Vidas negras importam), que, embora passada uma semana do violento episódio, já se tornaram icônicos, transmutando-os em um mote antidiscriminatório e pró-emancipatório universal. Portanto, ao se valerem dessas palavras de ordem, ativistas negros demonstram capacidade de assumir seus protagonismos na arena social com integral autonomia decisória e espírito de bravura.

Acontecimentos covardes como a morte de Floyd reacendem discussões sobre as lutas seculares pela garantia dos direitos civis das classes menos favorecidas – negros, indígenas, latinos, desempregados, miseráveis, inseguros – ou seja, das camadas mais vulnerabilizadas, dos marginalizados por força de um sistema socioeconômico arcaico e excludente. A potencial dimensão dos protestos pelo mundo vem nos ensinar que o povo negro clama com urgência pela concretização de uma utopia imbuída de paz, justiça, igualdade, liberdade, fraternidade, cidadania e harmonia recíproca entre as pessoas.

Enquanto isso, aqui no Brasil, não é diferente. Em Brasília, por exemplo, armou-se, em plena obscuridade, uma assombrosa (ironia do destino) aglomeração – transgredindo as normas de isolamento social – de manifestantes encapuzados de branco, o que nos remete à famigerada seita Ku Klux Klan, símbolo segregacionista e preconizador do ódio, do medo, do terror, da barbárie e da violência raciais nos EUA, bem como da negação dos direitos dos cidadãos afro-americanos. Obviamente, eles apoiam um governo ultraconservador e impopular, que age sob o manto do retrocesso.

Já na órbita governamental, o presidente da Fundação Palmares, instituída com a missão de promover a cultura negra e afro-brasileira, bem como mantê-la viva, havia dito, de modo errôneo, que a escravidão foi “benéfica”, além de se posicionar contrário ao Dia Nacional da Consciência Negra (celebrado em 20 de novembro) e à reverência da própria figura do mártir Zumbi, renegando as conquistas que os pretos e pardos obtiveram ao longo da sua áspera jornada. Em outra declaração com a qual não concordamos em hipótese alguma – para espanto nosso , o dirigente afirmou há pouco que o movimento negro é uma “escória maldita”.

Nós, descendentes de africanos escravizados, temos, com absoluta veemência, que valorizar nossas raízes, nossos valores, nossos hábitos, nossos costumes e nossa arte, além de perseverarmos pela nossa sobrevivência. Porém, tangibilizar uma quimera almejada há séculos no ideário do povo negro requer um itinerário duradouro a percorrer, uma vez que a violência, o desemprego, a fome, a miséria, a falta de moradia e a desigual concentração de renda – ou seja, as perturbações sociais em conjunto – perpetuam nos nossos profundos alicerces, fazendo com que esses pilares possam um dia se abalar.

O que importa para nós é a valorização consciente das nossas vidas, em contraposição à prática de tais barbáries humilhantes, por vezes impregnadas de radicalismo, e estamos convictos de que casos desumanos como o de George Floyd, incumbidos de macular lutas históricas por nossos direitos e deveres, não venham a se repetir. Vamos batalhar diuturnamente para derrotar qualquer óbice e estigma associados ao racismo estrutural. Por tudo isso, avante, já que o dia da vitória, da liberdade e da justiça, em breve, vai alvorecer para toda a negritude. Sem dúvida, vidas negras importam, sim!

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