Raymundo Sodré e Jorge Portugal contam como surgiu "A massa"

De autoria da dupla baiana, samba-chula, cuja letra denunciava as injustiças sociais na ditadura militar brasileira, foi a música mais tocada no ano de 1980

Texto: Hugo Gonçalves

Fotos: Reprodução/YouTube/Canal Danilo Ribeiro

Com informações do vídeo A belíssima história da canção A massa contada por Raimundo Sodré e Jorge Portugal! (2018), disponível no canal Danilo Ribeiro, do YouTube, e do portal Memória Globo

Matéria atualizada em 19 de julho de 2020, às 19h13


Sodré recordou que, ao assistir a um telejornal, disse: “Imagine o pessoal da mandioca!”, originando, a partir daí, o refrão

 

Há quarenta anos o Brasil inteiro se rendeu à genialidade e ao carisma de dois artistas baianos, graças a um samba-chula típico do Recôncavo, cuja letra denunciava as injustiças que acometeram a sociedade em pleno regime militar. Em parceria com Jorge Portugal, Raimundo – hoje grafado Raymundo, com “y” – Sodré fez de A massa a canção mais executada em 1980, tornando-a um clássico de nossa música.

“Todo mundo é curioso: como é que foi que surgiu aquela música?”, perguntou um irreverente Sodré, ao ser entrevistado pelo repórter Danilo Ribeiro, da TV Bahia, para seu canal homônimo no YouTube que propõe investigar a origem das músicas. A emblemática composição teve sua gênese quando, um dia, o cantor estava num hotel, ao lado da sua então esposa, a francesa Danielle, assistindo a um jornal pela televisão.

No noticiário em questão, foi exibida uma matéria segundo a qual a classe média brasileira já estava reclamando muito. “E eu disse: ‘Imagine o pessoal da mandioca!’, o pessoal que planta mandioca, porque passa, que não tem nem direito de chorar. Aí, então, nasceu isso: ‘Quando eu lembro da massa da mandioca, mãe/Da massa’. Fiquei com esse refrão desde 1976, até 1977. Foi quando Portugal colocou a letra”, recordou.

Mesmo antes de o poeta santo-amarense desenvolver a ideia a partir do “pegajoso” estribilho que Sodré havia lhe apresentado no Instituto Cultural Brasil-Alemanha (Icba), no Corredor da Vitória – área nobre do centro de Salvador –, ele profetizou que a então futura canção estaria entre as finalistas do Festival da Nova Música Popular Brasileira (MPB 80), promovido pela Rede Globo: “Rapaz, olhe só, você já imaginou um dia a gente no Maracanãzinho, com o povo todo cantando isso?”

Ao começar a escrever A massa, Jorge Portugal relatou que se dirigiu à escrivaninha por volta das 11 h e, passados onze minutos, já tinha terminado a letra. Já Sodré, após receber um telefonema do seu parceiro de composição, que hoje é também um renomado professor de Português em seu estado – “Vê se é isso que dá certo?” –, percebeu que os versos acrescidos ao refrão ficaram fantásticos. “Quando eu peguei a letra, rapaz, eu chorei. Juro que as lágrimas vieram”, emocionou-se.


“Deus jogou aquela luz bem forte em cima de mim”, declarou o músico, sobre o momento em que A massa foi anunciada entre as vencedoras


Enfim, a consagração no festival

Em 23 de agosto de 1980, veio a apoteose, no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. O público se aglomerou e vibrou nas arquibancadas do ginásio, que já havia sediado as finais das edições épicas do Festival Internacional da Canção (FIC), nos anos 1960 e 1970, com a ambição de torcer por sua música favorita – A massa era uma delas. Na opinião de Portugal, aquele dia foi inesquecível ao defendê-la juntamente com Raymundo Sodré.

Quando os mestres de cerimônia do MPB 80 anunciaram que o samba-chula estava entre as três primeiras colocadas, nas palavras do músico – que teve o disco mais vendido naquele ano –, “Deus jogou aquela luz bem forte em cima de mim, porque eu estava bem”. Portugal lembrou que, nos bastidores da finalíssima, ele disse: “Eu sou o dono daquela música”, e Sodré lhe respondeu: “Eu também sou!”

Final das contas: A massa, que já vinha desempenhando um tremendo sucesso nas paradas de todo o País, acabou faturando o terceiro lugar. Ficou atrás da romântica Foi Deus quem fez você, de Luiz Ramalho, interpretada pela cearense Amelinha – outra representante do Nordeste –, e de Agonia, de Mongol, na voz do carioca Oswaldo Montenegro, que se sagrou como a grande campeã daquele festival.

No entanto, a medalha de bronze para a canção defendida pelos compositores baianos, diante de um público que, segundo o portal Memória Globo, foi estimado em 30 mil pessoas, lhes proporcionou um sabor de vitória. Conforme relembrou Sodré, “em qualquer evento que eu ia cantar, o pessoal gritava logo antes de eu ligar o violão: ‘A massa!’ (risos)”, em alusão à música que, quatro décadas atrás, o notabilizou em escala nacional.


Portugal: “Um menino acanhado é um menino tímido, que está oprimido”


Análise da letra de A massa

Ao repórter Danilo Ribeiro, o poeta, compositor e professor Jorge Portugal teceu, verso por verso, uma breve análise dessa icônica e memorável parceria musical com Raymundo Sodré, terceira colocada no Festival da Nova Música Popular Brasileira (MPB 80), da Rede Globo.

A dor da gente é dor de menino acanhado

“É aquela dor que nunca se expressa. Um menino acanhado é um menino tímido, um menino que está oprimido. Todos nós estávamos sob o regime militar, a ditadura militar.”

Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar/Que salta aos olhos igual a um gemido calado

“Aquele gemido do menino acanhado, que não expressa”, e que salta aos olhos da sociedade.

A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar

“Mal-assombrado era a ditadura.”

Moinho de homens que nem jerimuns amassados/Mansos meninos domados, massa de medos iguais

Nessa parte, Portugal descreveu, em algumas frases, a opressão recorrente na ditadura.

Amassando a massa a mão que amassa a comida

“Que distribui a comida, a sobrevivência.”

Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais

“São aqueles que não se rebelam, aqueles que não questionam, aqueles que estão em estado de letargia, de alienação, e que, portanto, são manobrados por aqueles que, na verdade, amassam a massa e têm toda a riqueza em suas mãos.”

Quando eu lembro da massa da mandioca, mãe/Da massa... (refrão)

A partir do “Lelé, meu amor, Lelé/No cabo da minha enxada/Não conheço o coroné”, já é considerado o medley do folclore popular – “total, total, total”, nos dizeres de Portugal , incluindo as chulas de Santo Amaro, que o poeta, um de seus ilustríssimos filhos, incorporou n’A massa, tornando-a ainda maior. “Ficou mais Massa ainda!”, argumentou.


Escute, a seguir, o samba-chula A massa, composto por Raimundo Sodré – que a interpretou – em parceria com Jorge Portugal, na gravação original lançada em 1980, no LP batizado com o nome da canção.

Comentários