Gestora cultural promove arte literária como forma de combate ao racismo
Idealizadora de um projeto que busca incentivar leitura de autores (as) negros (as), paulistana Bruna Tamires transforma o gosto pelos livros em instrumento de afirmação e resistência
Com informações da matéria
exibida no Jornal da Cultura (TV Cultura) e da ONG Rede
Nossa São Paulo
Matéria atualizada em 14 de março de 2021, às 18h23
Ostentando a força e a afirmação racial em todas as dimensões, a gestora de projetos culturais Bruna Tamires Souza, de São Paulo, é um bom exemplo de como a promoção da arte serve de instrumento para ajudar a combater o racismo, começando pelos livros em sua estante. Ao se apaixonar pela literatura negra nos saraus da cidade, ela idealizou o Clube Negrita, que tem como premissa incentivar a fruição pela leitura de obras assinadas por escritores (as) negros (as).
“Como as pessoas leem apenas o caminho que está dado como clássico, que é recomendado nas escolas e que é majoritariamente branco, elas não conhecem a vida e o Brasil como ele é realmente”, argumentou a jovem, em entrevista à jornalista Semayat Oliveira, cofundadora do coletivo Nós, Mulheres da Periferia, com exclusividade para a TV Cultura.
Para Bruna – conhecida nas redes sociais como Malokêarô –, cultivar o hábito da leitura e ter a diversidade como elemento norteador da superação do racismo contribuem para transformar o presente e também o futuro. “A busca de informações, de leitura e de reflexão faz com que nós tenhamos atitudes diferentes dentro da sociedade, diferentemente de atitudes agressivas e violentas, porque a gente vai ter uma compreensão maior do todo”, prosseguiu.
Um estudo conduzido pela organização não-governamental (ONG) Rede Nossa São Paulo em parceria com o Ibope Inteligência, extinto em janeiro, e divulgado em novembro do ano passado demonstrou que, para 83% dos paulistanos, a percepção acerca da discriminação racial contra a população negra aumentou na maior metrópole do País nos últimos dez anos.
Segundo o levantamento, intitulado Viver em São Paulo: relações raciais, as diferenças de tratamento entre cidadãos negros e brancos são mais evidentes nos sete dos oito locais pesquisados. Tratam-se dos shopping centers e estabelecimentos comerciais (81%), escolas e faculdades (77%), ruas e espaços públicos (75%), ambientes de trabalho (74%) transporte público (70%), hospitais e postos de saúde (65%) e nos locais onde moram (57%). Já o ambiente familiar figura por último, com 37%.
“As redes sociais nos
possibilitam de imediato mostrar o fato para que as pessoas tenham
conhecimento. Eu acredito que seja o motivo pelo qual existe essa sensação de
aumento, porque na realidade sofremos por crimes de racismo e injúria
racial desde sempre”, afirmou a advogada Maria Sylvia Oliveira, presidente do
Geledés – Instituto da Mulher Negra.
Vítima de ataque
Foram exatamente o racismo a injúria que vitimaram Bruna Tamires, citada no início desta reportagem. Ao retornar do local onde trabalha, em 8 de janeiro deste ano, ela sofreu um ataque racista. O cenário desse brutal episódio era a saída da estação Pirituba da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), na zona norte da capital.
Enquanto Bruna se dirigiu ao ponto de ônibus, uma mulher a insultou pelas costas. Já em suas redes sociais, ao relatar sobre o incidente, a gestora cultural mencionou várias afirmações ofensivas, entre elas “o lugar desta gente preta é na senzala”.
De acordo com o boletim de ocorrências registrado na delegacia, o ato foi tipificado como injúria racial. Entretanto, o advogado Edmilson Cruz, que acompanha o caso, salientou que pelo menos três crimes foram cometidos contra a jovem naquela ocasião. “Foram a injúria, a tentativa de lesão corporal e a ameaça”, destacou.
Na avaliação de Edmilson, casos como esses são frequentes, mas poucos ganham repercussão na mídia, bem como a efetiva punição dos acusados. “As pessoas não estão sendo punidas por crime de racismo, ou por injúria racial. As punições, quando ocorrem, não chegam aos nossos ouvidos”, frisou o advogado.
Hoje, Bruna entra em contato
com várias pessoas que tentam auxiliá-la, esclarecendo-lhe como ela poderia alcançar
plenamente os seus direitos, bem como os possíveis mecanismos para se defender.
“Então, tudo isso está muito conectado com a informação, a leitura e esse
processo conjunto de todo mundo compartilhar conhecimento entre si”, concluiu.
Elemento fundante
A filósofa, ativista e escritora paulista Djamila Ribeiro, também colunista do jornal Folha de S. Paulo, observou que o racismo é um elemento fundante da nossa sociedade, por possuir caráter estrutural. “Se formos parar para pensar que o Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, durante quase quatro séculos pessoas negras eram mercadorias”, comentou ao Jornal da Cultura, em edição veiculada em 27 de fevereiro último.
Conforme Djamila, a consciência da população no que tange ao racismo, em uma sociedade como a brasileira, talvez tenha adquirido musculatura nos últimos anos. “Durante muito tempo, reforçou essa ideia da democracia racial, de que o Brasil não era um país racista, sendo um país da harmonia das raças. Isso impediu uma conscientização da população branca em relação ao racismo, mas também da população negra”, declarou.
O crescimento dessa atitude afirmativa, ainda segundo a filósofa, fez com que a elevação do percentual de alunos (as) negros (as) nas universidades – mediante a adoção de políticas públicas, a exemplo das cotas raciais – fosse aliada às conquistas históricas dos movimentos negros, e também a uma ampla visibilidade do discurso hoje onipresente nas redes sociais.
“As pessoas estão entendendo mais o que é isso, e não aceitando mais, denunciando mais, mas que sempre foi presente essa animosidade”, disse a autora do Pequeno manual antirracista (São Paulo: Companhia das Letras, 2019) – que em 2020 liderou o ranking dos livros mais vendidos no Brasil –, entre outras obras, acrescentando que as pessoas estão reagindo mais ao racismo.
Consciência através da informação
Djamila Ribeiro também ressaltou que, por intermédio da busca pela informação, as pessoas passaram a se conscientizar melhor em relação aos seus direitos. Já no campo literário, houve um incremento robusto no número de autores negros cujas publicações vêm sendo lidas e vendidas em eventos do setor, embora esse quantitativo ainda seja tão incipiente, afirmou a intelectual.
Sobre o peso que as redes vêm ganhando nos casos de injúria racial – um dos crimes sofridos por Bruna no início de janeiro –, Djamila considera esse fator como de suma importância, “porque, quando colocamos nas redes sociais, primeiro conseguimos saber que aquilo aconteceu. Muitas vezes, antes, não tínhamos como se comunicar dessa forma mais em rede. E acho que há uma maior pressão também, para que o caso seja resolvido”.
Nesse caso específico, classificado
pela filósofa como “totalmente absurdo”, ela soube pelas redes sociais que as pessoas comparecem ao local
do incidente para cobri-lo. “Nas redes sociais, a gente consegue disseminar (os casos) –
claro que temos um lado ruim dessas redes, inegavelmente. Mas, falando desse
lado positivo, acho que conseguimos nos comunicar melhor e atingir um maior
número de pessoas acerca desses temas”, analisou.
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