Cantora Juliana Ribeiro relembra alguns momentos com Riachão

Famoso por suas crônicas em forma de música que retratam o cotidiano da Bahia, sambista morreu em fins de março; meses antes, ilustre admiradora do mestre, que também é historiadora, conduziu palestra em homenagem ao amigo

Matéria atualizada em 18 de agosto de 2020, data do aniversário de Juliana, às 19h58


Segundo Juliana, primeira música de Riachão foi composta aos doze anos e falava de suas traquinagens como moleque
Hugo Gonçalves – 20/08/2019

O samba perdeu, em 30 de março último, um dos seus proeminentes cronistas que, impregnado de malandragem, irreverência e perspicácia, soube tecer um retrato fiel da Bahia e de sua gente graças às suas canções imortais. Considerado mestre do gênero, o cantor e compositor Riachão, apesar de sua vivacidade, partiu aos 98 anos, dos quais mais de setenta foram dedicados exclusivamente à música e à difusão da cultura popular.

Nascido e criado no Garcia, centro de Salvador, em 14 de novembro de 1921, seu nome de batismo era Clementino Rodrigues, fruto da união de dona Stephania, uma lavadeira, com o senhor José Euzébio, um carroceiro. Seu apelido, que décadas mais tarde o consagraria no cenário artístico baiano e nacional, surgiu na juventude, pelo fato de ser um rapaz brigão, ganhando fama no bairro.

“Os antigos diziam: ‘Esse rapaz, está pensando, não tem riachão que passe, não tem riachão maior! Está pensando que é maior que riachão? Oxente!’ (...) Aí se deu o nome Riachão”, disse a cantora, compositora e historiadora Juliana Ribeiro – que completou 42 anos nesta terça-feira (18) –, ao conduzir uma palestra dedicada ao sambista, com quem construiu uma profícua amizade, no salão nobre do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), meses antes da morte do homenageado.

Presente na ocasião, o mestre, muito lisonjeado e explicitando toda a sua plenitude, jovialidade e resiliência necessárias, fez um depoimento emocionante nos instantes que precederam o início da preleção de sua fiel admiradora, sendo ovacionado pela plateia. “Para mim, o samba é Deus e Deus é o samba. O samba é alegria, é vida, é ternura, é tudo de bom. O samba é Deus, Deus é a música. (...) Então, a música está realmente no coração de toda a humanidade!”

Conforme contou Juliana, a primeira das mais de 500 composições de Riachão, um samba sem título, foi feita aos doze anos de idade. Ainda segundo ela, quando o então menino Clementino escreveu a música, “era um moleque levado, traquina, e aí o pessoal falava muito disso, que era um menino muito levado. Aí, ele fez uma música sobre isso, falando do quão moleque traquina realmente ele era”.

Momento especial no TCA: Juliana Ribeiro, Claudete Macedo e Clécia Queiroz, juntas, no show Elas Cantam Riachão, em torno do homenageado (abaixo, sentado)
Divulgação – 12/08/2012

“Figura mitológica”

Juliana Ribeiro teve, por pouco mais de dez anos, a honra e o prazer de poder dividir o palco com Riachão, descrito por ela como “uma figura mitológica” e “aquela persona”, bem como de frequentar sua casa. Durante sua palestra, que fez parte do seminário Eu Sou o Samba, em 20 de agosto do ano passado – no qual também participavam outros músicos e estudiosos do gênero, a exemplo de Chocolate da Bahia e do santo-amarense Roberto Mendes –, ela relembrou alguns encontros de vida e música que compartilhou ao lado do mestre.

O primeiro desses momentos memoráveis – “um presente”, nas palavras da cantora – ocorreu em plena Festa de Santa Bárbara, no dia 4 de dezembro de 2009, no Largo do Pelourinho, a convite da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult). “Santa Bárbara, muito obrigado, senhor, por essa bênção vermelha. Então, foi só alegria, é a primeira vez, foi uma surpresa”, emocionou-se.

Uma das expoentes da atual geração do samba, Juliana teve, um ano depois, a audácia de convidar o filho ilustre do Garcia para uma apresentação na Praça Tereza Batista, no Pelourinho. “Falei: ‘Ô, mestre, você não quer vir, tal, para o show?’. E falou: ‘Minha filha, eu vou, eu vou, sem problema nenhum’”, recordou, enfatizando que Riachão era detentor de uma alma artística.

Em agosto de 2012, o Teatro Castro Alves reuniu Juliana e suas colegas de trabalho Clécia Queiroz – que recentemente defendeu a tese de doutorado em Difusão do Conhecimento pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), tendo as sambadeiras do Recôncavo Baiano como objeto – e a veteraníssima Claudete Macedo, para um show no projeto Domingo no TCA, intitulado Elas Cantam Riachão.

“Um momento muito especial, um convite que fizeram”, relembrou a cantora e historiadora, destacando a presença do homenageado no final do espetáculo-tributo, quando trouxe grandes surpresas para todos que estavam na plateia do TCA – “era uma grande festa, como sempre foi”, declarou.

Durante o show, que um mês depois foi levado ao Parque da Cidade, ela teve a grata surpresa de também conhecer Claudete Macedo, que, assim como Riachão, era uma cantora de rádio, apresentando-se frequentemente na Rádio Sociedade da Bahia. “Claudete foi a primeira mulher a gravar uma música de Riachão, foram para o Rio de Janeiro, defenderam várias músicas lá no Rio, na Rádio Nacional”, salientou.

Na acepção de Juliana, “Claudete tem um tipo de canto que está indo embora, que é um canto extenso – quer dizer – Claudete começa a cantar, (pois) ela não precisa de microfone. A voz dela chega no outro lado, sem microfone – aquela voz grande, cheia de vibratos, voz de cantoras de rádio. Elizeth Cardoso (1920-1990) e Dalva de Oliveira (1917-1972) foram desse tipo de voz, de colocação vocal. Claudete Macedo é desse tempo, e canta dessa forma. É um absurdo essa mulher cantando!”

Homenagem na folia

No Carnaval de 2014, Riachão recebeu uma merecida homenagem, quando a Prefeitura de Salvador resolveu rebatizar o local do desfile da tradicional Mudança do Garcia como Circuito Riachão. “Tem gente que ainda não sabe disso, que a gente tem os circuitos Dodô (Barra-Ondina), Osmar (Campo Grande), Batatinha (Pelourinho) e Riachão, que é o circuito do Garcia, não só na segunda-feira – veja bem, na segunda-feira tem a Mudança do Garcia – mas tudo o que acontece no Garcia pertence ao Circuito Riachão”, ponderou Juliana.

O quarto circuito da folia soteropolitana teve sua inauguração oficial em clima de apoteose, quando a cantora foi escalada para desfilar na Mudança ao lado do eterno ícone do samba, a bordo de um minitrio.

“Olhe que a gente chegou no Campo Grande, com um minitrio, na segunda-feira de Carnaval, com Riachão, com essa lenda viva em cima do trio, você acha que as pessoas deram passagem? Riachão foi, fez uma abertura do percurso, voltou para casa, descansou, ficou em casa, e, na hora em que a gente estava chegando no Campo Grande, ‘pode botar o mestre!’ Aí, vem Riachão, e a gente ficou mais de uma hora esperando no trio”, narrou a artista.

“Ele conseguiu transformar a mulher realmente no sagrado, todas as vezes que ele se refere ao feminino”, argumentou a cantora e historiadora
Hugo Gonçalves – 20/08/2019

Padrinho generoso

Como a extensa e colossal obra de Riachão perpassa vários momentos da trajetória de Juliana Ribeiro, ela o convidou para ser o padrinho do projeto Preta Brasileira, durante o show Raízes da Bahia, inserido no projeto Música no Parque, em julho de 2015. O espetáculo, realizado no anfiteatro do Parque Costa Azul, também contou com a participação do grupo folclórico Barquinha de Bom Jesus dos Pobres.

A concepção do projeto, derivado da música homônima composta pela cantora, tem como fio condutor o papel da mulher agregado ao seu lugar de empoderamento. Porém, ela nunca viu um homem como Riachão adotar um tratamento generoso com o feminino. Sob essa perspectiva, Juliana explicou, em sua palestra, como surgiu o convite que fez do sambista o padrinho de Preta Brasileira.

“Se a gente pensar num homem que nasceu em 1921, pense na cabeça de um homem que nasceu em 1921. E ele conseguiu reverter tudo isso na vida dele e transformar a mulher realmente no sagrado, todas as vezes que ele se refere ao feminino, às companheiras, às pessoas, às nossas companheiras de trabalho (...), tantas de nós. E assim, eu nunca vi Riachão ter nenhum tipo de comportamento, nem por soar desrespeitoso, e nem na fala, nem no verbo, nem na atitude. Isso é muito difícil de encontrar no nosso mundo machista atual. A gente sabe disso. E aí eu estou falando de um homem que nasceu em 1921, que reuniu todas essas características e conseguiu transmutar isso”, discursou.

Durante o show no Parque Costa Azul, o eterno mestre, entusiasmado, se dirigiu ao público proferindo um discurso cativante. “A razão da alegria dos artistas, dos músicos, é a presença de vocês. Por isso que eu, quando chego, peço ao meu Pai celestial para retornar, todos de vocês, para seus lares, na santa paz do Senhor.” E Juliana lhe retribuiu com um gratificante amém.

Confira os melhores momentos da apresentação de Juliana com Riachão, no Parque Costa Azul (2015), no vídeo abaixo:


“É dessa generosidade que estou falando, é dessa noção de equidade e igualdade de gênero, porque eu acho que é muito transformador um homem que nasceu lá no início do século (XX), e que conseguiu transformar, transmutar, realmente, essa mentalidade machista para uma coisa tão generosa”, argumentou, felicíssima, a cantora e historiadora baiana.

Ela contou ainda que, em contraposição a Vá morar com o diabo – mais tarde regravada por Cássia Eller (1962-2001) em seu prestigiado álbum Acústico MTV, de 2001 –, Riachão compôs Somente ela, em homenagem à sua esposa Dalva, falecida em um acidente automobilístico em 2008 (Somente ela/Se estou com ela/A minha vida é um paraíso). “O que eu percebo é o que ele sempre fala assim: quando ele estava acompanhado, quando ele tem essa companheira, esse amor na vida de Riachão, é uma faísca de inspiração para novas canções”, alegrou-se Juliana.

Até a sua morte inesperada – por sinal, um dia após sua amada cidade, cujo cotidiano o inspirou na feitura de suas narrativas que se tornaram célebres, completar 471 anos – ser consumada, Clementino Rodrigues continuava compondo ativamente. Uma de suas últimas composições, Panela no fogo, cujo arranjo mistura coco e maracatu (assista ao vídeo abaixo, gravado no show Preta Brasileira, que abriu a temporada 2020 do Domingo no TCA, em 19 de janeiro), foi incluída por sua amiga e discípula no repertório do CD Preta Brasileira, a ser lançado nos próximos meses. Enquanto isso, é só aguardar o álbum sair do forno para degustá-lo.


Comentários

Hugo Gonçalves disse…
Hugo querido que coisa preciosa! Obrigada pelo carinho e deferência! Nosso Riachão merece esta homenagem!
Abraços
Juliana Ribeiro