Romance retrata dura vida de sertanejos em um Brasil parado na escravidão

Vencedor de prêmios importantes como Jabuti e Oceanos, Torto arado, de Itamar Vieira Júnior, é ambientado em uma comunidade rural no sertão da sua Bahia natal, sendo protagonizado e narrado por duas irmãs

Com informações da matéria exibida no Soterópolis (TVE Bahia), do portal El País Brasil e do portal da editora Todavia

Matéria atualizada às 22h37


Personagens centrais da trama, irmãs Bibiana e Belonísia percorrem trajetórias opostas
Capa: Elisa von Randow (design) e Linoca Souza (ilustração)


Simultaneamente encantador e dramático, o superpremiado romance Torto arado (São Paulo: Todavia, 2019, 264 páginas), do baiano Itamar Vieira Júnior, induz o leitor a mergulhar na saga de uma humilde comunidade de trabalhadores rurais em pleno sertão da Bahia, narrada por duas irmãs protagonistas descendentes de escravizados. E o imprescindível: retrata a face de um Brasil profundo, dolorosamente estacionado no seu próprio passado escravocrata.

O instantâneo sucesso da obra ficcional regionalista, bem como seu prestígio adquirido pelo público e pela crítica especializada, fez com que ela fosse triplamente coroada com importantes premiações. Faturou os prêmios Leya, em Portugal – onde havia sido publicado inicialmente em 2018, pela editora de mesmo nome –, Jabuti, na categoria Romance Literário, e Oceanos de Literatura em Língua Portuguesa. Esses dois últimos foram conquistados em 2020.

Constituído por três partes, o livro de conteúdo atemporal é ambientado na fazenda Água Negra, nas profundezas da Chapada Diamantina, a partir das narrativas de Bibiana e Belonísia, que percorrem trajetórias opostas. Uma história ao mesmo tempo repleta de magia e realismo, conduzida com maestria e impregnada de uma prosa melodiosa tecida pelo autor, e que envolve antagonismos de vida e morte, combate e redenção.

O clímax de um acidente já dá início à trama de Torto arado. Filhas de Zeca Chapéu Grande – um líder comunitário e espiritual –, as duas irmãs, ainda crianças, encontram uma velha e misteriosa faca guardada na mala, debaixo da cama de sua avó Donana. “Essa faca corta a vida das personagens muitas vezes, é um símbolo desse duplo que são as irmãs, que se dividem para depois ser uma só”, explicou Itamar, 41 anos, em entrevista por telefone ao portal El País Brasil, no final do ano passado.

Enfim, tal acidente se manifesta e as vidas de Bibiana e Belonísia se entrelaçam, de modo que uma irmã necessariamente seja a voz da outra. Como está descrita no livro a expressão gestual das personagens, mas não a verbal, o leitor não sabe qual das duas foi mutilada no comovente episódio, até atingir um terço do romance.

Escrita começou na adolescência

Declarando-se influenciado pelas leituras das obras de três ícones da geração de 1930 – o alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), a cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), além do seu conterrâneo Jorge Amado (1912-2001) –, Itamar Vieira Júnior começou a redigir Torto arado há mais de duas décadas, quando ainda era um adolescente de 16 anos, fazendo uso de uma máquina de escrever.

Em entrevista ao Soterópolis, revista semanal de arte e cultura da TV Educativa da Bahia (TVE), Itamar recordou que chegou a escrever 80 páginas, mas não tinha maturidade suficiente para prosseguir o desenvolvimento do romance. Além disso, quando o escritor teve que mudar de residência, o manuscrito original já desapareceu. Porém, com o passar do tempo, o texto se modificou radicalmente.

“Então, quando eu retomei a escrita dessa versão – a que chegou ao público –, o que ficou exatamente daquela primeira história foi o mote da relação das duas irmãs com o pai, a relação que elas têm com a terra, e também o título”, explicou.

Em relação ao título, Itamar esclareceu que foi extraído do emblemático poema Marília de Dirceu (1792), de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) – um dos expoentes do Arcadismo, movimento literário germinado nas Minas Gerais do século XVIII cujas obras prezavam pela objetividade, simplicidade e valorização da vida campestre.

A estrofe é a seguinte: “A devorante mão da negra Morte / Acaba de roubar o bem que temos; / Até na triste campa não podemos / Zombar do braço da inconstante sorte: / Qual fica no sepulcro, / Que seus avós ergueram, descansado; / Qual no campo, e lhe arranca os frios ossos / Ferro do torto arado (grifo deste jornalista)”.


Graças a sua formação como geógrafo, Itamar incorporou em Torto arado elementos de sua área, bem como de outras ciências
Arquivo pessoal – 22/02/2019


Influências da Geografia

Geógrafo graduado pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), onde também se tornou mestre nessa área e doutor em Estudos Étnicos e Africanos, Itamar imprimiu no romance – o primeiro da sua carreira literária e que figura entre os livros mais vendidos do Brasil na atualidade – os rastros da sua formação acadêmica. Então, o escritor passou a incorporar na obra os aspectos não apenas da Geografia, como também de outras ciências, além da sua extrema habilidade narrativa.

Sua fértil experiência junto a populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas e assentados rurais no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – onde é servidor há quinze anos –, concentrada nos interiores baiano e maranhense, favoreceu o surgimento de parte do imaginário literário do escritor nascido em Salvador, onde mora até hoje.

“Eu fui trabalhar por necessidade, e porque eu senti que era algo que fazia sentido na minha vida como se fosse numa missão mesmo, compreender esse País profundo, esse Brasil profundo, de alguma forma me conectar também com minhas raízes, com os meus antepassados”, disse ao Soterópolis.

O autor de Torto arado sempre confessa que, para elaborá-lo, teria que substituir seus títulos obtidos academicamente por sua vivência in loco com os trabalhadores do campo. “Isso me permitiu compreender e entender melhor as personagens literárias e fazer com que essas vidas as atravessassem também”, justificou.

No enredo do romance há ainda a frequente presença das noites de Jarê, que consiste em uma religião de matriz africana praticada exclusivamente na Chapada Diamantina. Resultante da fusão de elementos provenientes do candomblé, da umbanda, do catolicismo rural, do espiritismo e do xamanismo, o Jarê é regido por entidades mágicas denominadas encantados.

Presentes no cotidiano comunitário para além da dimensão sobrenatural, os encantados emergem como um método de resistência espiritual, cultural e política bem antes das mobilizações sindicais. “Para além de uma religião, (o Jarê) trata-se de uma cosmovisão, é a forma como essas pessoas entendem o mundo e sua realidade”, observou Itamar, cujas visitas às comunidades na Chapada lhe permitiram escrever acerca do tema.

Velhas questões intocadas

Ao retratar a áspera jornada dos sertanejos, Itamar também aborda e migra para o texto literário questões arcaicas que perpetuam até hoje nas estruturas da sociedade brasileira – inclusive no campo –, como a escravidão e o trabalho análogo à escravidão. Já o desfecho é contado por um espírito que permeou o Brasil colonial e o secular período servil no País, tentando intervir na realidade contemporânea.

“No romance – que eu poderia chamar de romance de formação, porque a gente acompanha o arco dessas personagens da infância à maturidade –, elas percebem que os trabalhadores e seus familiares vivem em condições de extrema exploração. E aí, isso vai tocar numa questão que é muito presente ainda no Brasil, a de que a abolição da escravatura não foi plenamente realizada”, salientou o escritor, ele próprio descendente de negros escravizados e índios Tupinambá.

Entretanto, a premiada obra faz ainda uma alusão aos laços de solidariedade, que podem ser encontrados em inúmeras famílias camponesas em situação de vulnerabilidade social, predominantes no Nordeste.

“E como essa solidariedade é um poderoso instrumento de resiliência, e permite que elas atravessem gerações, mesmo quando estão fadadas ao extermínio, à aniquilação, pela própria estrutura social do País”, argumentou Itamar Vieira Júnior. É desse ato de amor ao próximo que as comunidades brasileiras traumatizadas pelas injustiças históricas, como a narrada nas mais de 260 páginas de Torto arado, estão precisando com urgência.

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