Você tem fome de quê? De comida, diversão e arte
Símbolo do rock nacional, o funk-manifesto Comida, dos Titãs, seduziu gerações de uma
juventude que clamava por mudanças urgentes nas estruturas de uma pátria onde a
democracia havia ressuscitado
Os Titãs em 1988: um octeto do qual
faziam parte Marcelo Fromer, Arnaldo Antunes, Nando Reis, Tony Bellotto,
Charles Gavin (em pé),
Sérgio Britto, Paulo Miklos e Branco Mello (agachados)
(Foto:
Divulgação)
Uma
fantástica obra-prima que, de tão primorosa poética e musicalmente virou, da
noite para o dia e vice-versa, emblema do cancioneiro juvenil brasileiro,
alerta dirigido aos rapazes e às moças inconformados com propostas cautelosas.
Estamos nos referindo a uma das canções mais populares dos Titãs e,
absolutamente, do nosso rock’n’roll: o funk eletrônico Comida, lapidado a quatro mãos por três dos oito componentes que tinham
– a banda, gigantesca de fato e de direito, foi drasticamente reduzida a um
quarteto.
Composta
pelo poeta e vocalista Arnaldo Antunes, pelo tecladista e vocalista Sérgio
Britto e pelo guitarrista Marcelo Fromer, que infelizmente veio a óbito após
ser atropelado por uma motocicleta, em 2001, a otimista Comida era a segunda faixa do quarto LP titânico, nominado com o
extenso título Jesus não tem dentes no
país dos banguelas, lançado em novembro de 1987 pela gravadora WEA, e um
dos estrondosos sucessos daquele álbum.
O hit-manifesto,
que logo introjetou no consciente e no inconsciente coletivos, acabou sendo a
faixa número dois de Jesus...,
inserida no lado T, o das músicas mais eletrônicas e dançantes, equivalente ao tradicional A – no vinil, a face oposta, B, a do rock pesado, hardcore, era batizada de J. Comida situa-se entre a faixa de abertura, Todo mundo quer amor, de Arnaldo, e a terceira, O inimigo, do vocalista Branco Mello e da dupla guitarrista Marcelo Fromer e Tony Bellotto, executadas numa sequência ininterrupta.
“Desde
seu lançamento, Comida transformou-se
em hino da juventude brasileira, ao lado de músicas como Alegria, alegria (1967), de Caetano Veloso, e Pra não dizer que não falei de flores (1968), de Geraldo Vandré”,
argumentaram Myriam Becho Mota e Patrícia Ramos Braick, autoras do livro História: das cavernas ao terceiro milênio,
publicado em 2002 pela Editora Moderna, ao fazerem um breve panorama
retrospectivo sonoro juvenil com outras duas obras-primas da MPB, que apelavam
para a resistência à ditadura militar.
Na
ótica das historiadoras, a canção, forjada por músicos imbuídos de consciência,
liberdade, eloquência e senso crítico, “lembra que é possível associar bens
materiais e bens culturais, dinheiro e felicidade, política e prazer”. Essa
perspectiva elucidativa induziu os jovens brasileiros a se mobilizarem em
diferentes conjunturas da nossa história, enfrentando todo o tipo de barbárie e
clamando por mudanças urgentes de ordem e progresso nas estruturas políticas,
econômicas, sociais e culturais do país.
Politicamente
correto
Ao coabitar
com Desordem, um diagnóstico
crítico-reflexivo da situação vivenciada no Brasil naquele final dos anos 1980,
e Nome aos bois, uma profusão de 34
nomes de personalidades, entre assassinos, ditadores e reacionários, faixas do
lado J (ou B) de Jesus..., Comida deu um caráter politizado ao quarto disco dos Titãs, num efervescente contexto em que a democracia renasceu no país após deixar sequelas de obscurantismo autoritário, preparando-se para ganhar uma nova Constituição, a ser promulgada em 5 de outubro de 1988.
Escalada
para uma campanha publicitária da marca de roupas Hering para seduzir
consumidores jovens, em 1989, como símbolo de uma geração, a música também
marcou lugar cativo no ambiente intelectual, pelo fato de a letra tornar-se
tema de redação no vestibular de 1991 da Fundação Universitária para o
Vestibular (Fuvest), responsável pelos exames de admissão aos cursos da
Universidade de São Paulo (USP).
Comida retornava à cena
musical em 1992, ano pródigo para os rumos da nossa pátria. Seus fragmentos
magistrais, como “A gente quer comida,
diversão e arte” e “A gente quer
inteiro e não pela metade”, estampavam os cartazes das passeatas
aglomeradas de estudantes ao suplicarem o impeachment
do então presidente da República, Fernando Collor de Mello. No ano seguinte,
a canção foi cedida para o benemérito sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), o
Betinho, utilizar na campanha contra a fome da Ação da Cidadania contra a
Miséria e pela Vida, uma de suas luminosas iniciativas.
Segunda faixa do LP Jesus não tem dentes
no país dos banguelas, de 1987, Comida foi inserida no lado T (equivalente ao A), o mais eletrônico e dançante do álbum
(Capa:
Sérgio Britto)
Música
nasceu em viagem
Sobre
o processo de criação da música, os jornalistas Hérica Marmo e Luiz André
Alzer, no livro A vida até parece uma
festa: toda a história dos Titãs, biografia do grupo escrita em 2002, narraram
que, durante uma viagem da turnê do disco anterior, Cabeça dinossauro (1986), Arnaldo apresentou a Marcelo e a Britto
os primeiros versos, nos quais articulavam a carência de cultura à problemática
da fome. Num hotel onde estavam hospedados, o guitarrista e o tecladista
fizeram a melodia e acrescentaram os versos introdutórios: “Bebida é água? / Comida é pasto? / Você tem sede de quê? / Você tem
fome de quê?” à lapidar letra esboçada pelo inventivo Arnaldo.
Assim
como Comida, outras canções que em
seguida seriam interpretadas em Jesus não
tem dentes no país dos banguelas – foram cinco, a saber: Corações e mentes, Mentiras, Desordem, Armas pra lutar e Nome aos bois – iam entrando, espontaneamente, no desenrolar dos
shows de Cabeça dinossauro. O
acréscimo desses números inéditos no repertório da turnê, a princípio, seria
muito mais para satisfazer o próprio octeto, fazendo com que os espetáculos
fossem menos repetitivos, do que testar a potencialidade das músicas para
decidir se elas seriam registradas em vinil.
O
quarto álbum dos Titãs, ao contrário do antecessor, chegou ao estúdio Nas
Nuvens, no bairro carioca do Jardim Botânico, em estágio de mutação como se
fosse em laboratório, devido aos instrumentos, timbres e ritmos ideais específicos
de cada faixa que os músicos trabalhavam nos dois meses de gravação, em
setembro e outubro de 1987. Foi o caso de Comida,
quase acústica pouco antes das gravações, cujo arranjo definitivo consumiu três
dias para ser concluído. “Além disso, Arnaldo cantava como se fosse um funk
triste, o que não agradava a todos na banda”, escreveram Hérica e Luiz André.
De
acordo com os biógrafos, a ideia de uma ritmicidade mais frenética no lendário
e engajado funk partiu do produtor Liminha, obcecado pela música eletrônica e
pelas experiências de hibridização dessa vertente revolucionária com o rock.
Arquiteto do sucesso titânico por ter produzido Cabeça dinossauro, o ex-mutante, que passou a ter um relacionamento
estreito com o octeto, incrementou o arranjo operando a bateria eletrônica
SP-1200 – que havia trazido de Londres, onde estava produzindo um LP da banda
inglesa de rock Sigue Sigue Sputnik – e tocando baixo sintetizador e guitarra.
Antiga fã dos Titãs, Marisa Monte
elegantemente interpretou a música em show que daria origem a seu disco de estreia
(Foto:
Divulgação)
De
fanática a famosa: Marisa Monte
Morena
de voz encantadora e atraente, a intérprete Marisa Monte, uma antiga fã dos
Titãs, teve a elegância de incluir Comida
no repertório dos shows que justamente se converteriam em seu álbum de estreia,
MM, em 1988. Fazendo uma temporada na
extinta casa noturna Aeroanta, em São Paulo, ela teve seu primeiro contato com
o grupo em razão de uma armação atribuída ao então empresário da cantora, Lula
Buarque. Marisa, então, resolveu enviar convites para cada membro dos Titãs,
que já tinham ouvido falar perfeitamente nela.
Lula
Buarque, ciente da presença do então octeto na plateia, dirigiu-se ao camarim e
advertiu a Marisa: “O Arnaldo está aí só esperando você chamá-lo para cantar Comida”. De súbito, a talentosa garota convidou Arnaldo para subir no palco e entoar a música. Graças àquela
participação, o compositor se rendeu às virtudes de um jovem prodígio feminino
da MPB, brotando uma afinidade, que anos mais tarde se tornaria uma parceria
promissora. Entre comida, diversão e arte, provando, filosoficamente, que “a
gente quer inteiro e não pela metade”.
Assista, abaixo, ao maravilhoso videoclipe de Comida, dos Titãs, artisticamente elaborado. No vídeo, originalmente exibido no Fantástico de 28 de fevereiro de 1988, os integrantes do então octeto (especialmente Arnaldo Antunes) passeiam pelos corredores de um supermercado. A letra criativa dessa canção vem logo em seguida.
Comida
Arnaldo Antunes, Sérgio Britto e Marcelo Fromer
Bebida é água.
Comida é pasto.
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida,
A gente quer comida, diversão e arte.
A gente não quer só comida,
A gente quer saída para qualquer parte.
A gente não quer só comida,
A gente quer bebida, diversão, balé.
A gente não quer só comida,
A gente quer a vida como a vida quer.
Bebida é água.
Comida é pasto.
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comer,
A gente quer comer e quer fazer amor.
A gente não quer só comer,
A gente quer prazer pra aliviar a dor.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer dinheiro e felicidade.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer inteiro e não pela metade.
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida,
A gente quer comida, diversão e arte.
A gente não quer só comida,
A gente quer saída para qualquer parte.
A gente não quer só comida,
A gente quer bebida, diversão, balé.
A gente não quer só comida,
A gente quer a vida como a vida quer.
Bebida é água.
Comida é pasto.
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comer,
A gente quer comer e quer fazer amor.
A gente não quer só comer,
A gente quer prazer pra aliviar a dor.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer dinheiro e felicidade.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer inteiro e não pela metade.
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