Peregrinações por Baiacu: minhas impressões sobre um deserto, singelo e tranquilo reduto de pescadores
Texto e fotos: Hugo Gonçalves
Casas erguidas em madeira, palha e sapê dão ao pacífico vilarejo o aspecto de colônia de pesca
Em Baiacu, praia serve de “porto” para embarcações pesqueiras
Facilmente adaptados ao clima, manguezais são espécies botânicas predominantes na região
Na ilha de Itaparica, há um simples vilarejo
oculto, escondido no meio de uma vegetação de dimensões incomensuráveis, similar
a uma colônia de pescadores. Ao deixarmos a rodovia que une o terminal marítimo
de Bom Despacho, ponto de embarque e desembarque de passageiros através do
sistema ferry-boat, a municípios do
Recôncavo como Nazaré das Farinhas, fomos explorar a ilha por um ângulo que
nunca tinha visto, pela margem inversa da estrada asfaltada.
Mesmo no interior de Vera Cruz, município de
maior extensão territorial de um dos redutos turísticos primordiais da Baía de
Todos-os-Santos, onde aglomera o grosso das praias e dos povoados da ilha, nos deslocamos
de uma paisagem para outra saindo da BA-001. O objetivo do nosso êxodo
temporário foi conhecer um complexo comunitário caracterizado pela
tranquilidade, cuja boa parcela de seus habitantes sobrevive da pesca e da
criação de mariscos, como se fosse um profícuo exercício testemunhal
antropológico.
Seguimos então, depois de minutos de desbravamento
por uma incógnita estrada “pavimentada” com uma mistura de barro e asfalto que corta comunidades desertas bucólicas e modestas, idênticas a povoados tipicamente interioranos, a um distrito
chamado Baiacu – na verdade, a palavra, de origem indígena, é oxítona, com o “u”
tonicamente pronunciado. Mas a pronúncia paroxítona, com o segundo “a” tônico (Bai-á-cu),
é supostamente a mais adequada, para impedir quaisquer ambiguidades vocabulares
ou equívocos e vícios prosódicos suspeitos.
Baiacu, peixe que empresta nome ao local, é
uma espécie exclusiva de águas oceânicas, que, ao ser consumida in natura, de repente injeta no nosso
corpo um veneno maligno e mortífero, de sensação gustativa ligeiramente amarga,
liberado pelo próprio animal. Por conseguinte, o baiacu (com “b” minúsculo, por
fazer alusão a um substantivo comum) deve ser completa e cuidadosamente
manipulado, precisamente higienizado e perfeitamente cozido, a fim de
proporcionar um paladar retificado, sem medo de devorar sua carne.
Por ironia do destino (?), jamais tive o
privilégio de comer um delicioso baiacu, inclusive em forma de moqueca, marca
registrada do distrito encravado em parte da Mata Atlântica, bioma que prevalece
na região. Apesar de a biodiversidade ser pujante no horizonte de uma paisagem
que espanta a potencialidade sensorial do visitante, o ecossistema, infelizmente,
continua ameaçado de extinção pela crescente e insustentável atividade
predatória dos adversários da manutenção ecológica, tais como mercenários e especuladores.
O povoado alegre, ameno, pacato, humilde e
harmonioso, cuja abundância, espontaneidade e hospitalidade de pessoas simples,
entre pescadores, marisqueiros, artesãos, donas de casa, comerciantes, autônomos, microempresários,
educadores e ambientalistas, seduz a atenção de um modesto contingente de cientistas, pesquisadores,
turistas e anônimos como eu, que fui visitá-lo pela primeira vez, e de uma razoável caravana
de gente famosa.
A respeito do panorama imobiliário em
Baiacu, edificaram-se, nas áreas longínquas ao mar e aos mangues, construções de
alvenaria para abrigar moradores, veranistas, escolas, estabelecimentos comerciais, templos religiosos, pequenos
escritórios, bares e restaurantes. Na contramão – observem o paradoxo –, foram construídas, nos espaços
contíguos à natureza, residências de madeira, palha e sapê, constituindo uma
verdadeira colônia de pesca, além de imóveis de alvenaria erguidos num
quantitativo ínfimo.
Uma indiscutível coexistência pacífica e
recíproca de populações vegetais, animais e humanas em uma atmosfera propícia,
aprazível e impulsionadora de sinergias, confluências e consonâncias comunitárias
geradoras de felicidade e liberdade, me causou tanta surpresa àquela distante civilização
batizada com o nome de um exótico ente aquático nativo, onde a bonança é grandiloquente na plenitude de seus resplandecentes seres que a habitam.
No contexto ambiental, onde impera a
preservação dos recursos que a Mãe Natureza, ao proclamar fidelidade a Deus,
nos entregou, é lógico, o ecossistema que circunda a vila de Baiacu tem como especialidade botânica predominante os vastíssimos e verdejantes manguezais com suas raízes aéreas,
adaptáveis a nossos fatores climáticos tropicais úmidos. Tudo conjugados com a força vital que
emana do imenso manancial de águas límpidas provenientes do mar azul.
Quando eu os observei de perto, a olho nu, nos escapamos,
com uma tênue parcimônia, das turbulências que modificam frequentemente na rotina
da paisagem dos grandes e médios núcleos urbanos, submetendo-nos a um plácido e revigorante estado de espírito. Fiquei absurdamente
estupefato e maravilhado pelo esplêndido tamanho dessa formosura, bem como pela extrema precisão,
da verdura que reveste a genuína lama dos mangues, aplicada em larga escala para
finalidades terapêuticas.
As águas da Baía de Todos-os-Santos servem
essencialmente de “porto” para embarcações pesqueiras, geralmente minúsculas,
já que a pesca e a aquicultura são atividades econômicas que exercem
prevalência e substancialidade sobre o distrito, isolado das demais localidades
de Vera Cruz – Mar Grande, Barra do Gil, Barra Grande, Barra do Pote, Coroa,
Conceição, Aratuba, Berlinque, Cacha Pregos, etc. – e também do vizinho município
de Itaparica, conhecido por sua importância histórica, em especial na cidade.
Enfim, o pacato cenário da vida local, aliado
às incessantes flora e fauna autóctones e condensado por atributos vantajosos
exemplificados na comunhão, na amizade, na bondade, na harmonia, na
sociabilidade, na sustentabilidade e no altivo dom de ser feliz, transforma
Baiacu num paraíso ideal, e no entanto um lugar pouco preferencial, para consumir
algumas estadias na ilha sem pagar um centavo sequer. Para mim, a primeira
impressão que tive em Baiacu transparece em vocábulos mínimos: um singelo povoado.
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