(Re) tribalização, hedonismo e tatuagem
Artigo
escrito em 1º de novembro de 2012 para o blog Minha Tattoo Bahia
Desde
os primórdios da humanidade, a tribalização já existia com a interação entre
várias pessoas, por meio da linguagem oral. Com o passar do tempo, entretanto,
foram lançadas novas tecnologias, que revolucionaram a comunicação no final do
século XX. Na década de 1960, o teórico canadense Marshall McLuhan (1911-1980)
havia profetizado que elas poderiam contribuir no aparecimento de novas formas
de tribalização.
Também
na mesma época, num contexto em que a violência racial e a Guerra do Vietnã
abalavam os Estados Unidos, surgia aquilo que os analistas sociais batizaram de
contracultura. Essa concentração de fenômenos teve como propósito contestar a
visão de mundo racional, moralista, racista, consumista e tecnocrata que
prevalecia na sociedade ocidental daquele período.
Os
movimentos contraculturais brotaram a partir de uma perspectiva hedonista, ou
seja, da simples busca do indivíduo pela felicidade. Entretanto, eles nasceram
fora dos parâmetros reacionários impostos pelas instituições político-sociais.
Dentro dessa conjuntura, estava a grande utopia dos hippies, que pregava
a construção de um “paraíso aqui e agora”, marcado pelo lema “paz e amor”.
Para
tanto, eles conceberam seu próprio estilo de vida e romperam com o materialismo
e o racionalismo da sociedade moderna, adquirindo um novo ambiente físico e
mental. Baseado nisso, constituíram-se as comunidades hippies e
alcançaram-se as descobertas do misticismo e do psicodelismo das drogas,
principalmente o ácido lisérgico (LSD). Essas comunidades foram criadas a
partir de 1966, em meio a um clima astrológico que profetizava o advento de um
novo mundo pacífico e harmonioso.
Na
realidade, essas experiências místicas eram uma tentativa de a juventude se
desvincular dos mecanismos repressores da cultura ocidental, que atuavam de
forma alienante acima das vontades e dos desejos individuais, limitando-os na
sua sensibilidade, através de uma racionalidade e de uma tecnocracia –
sociedade dirigida por especialistas técnicos e seus modelos científicos –
exageradas.
O
panorama musical da contracultura foi inaugurado com o Monterey Pop Festival,
realizado na Califórnia em junho de 1967, onde se apresentou Jimi Hendrix
(1942-1970). Artífice da fusão entre o blues (música negra) e o rock’n’roll
(música branca), o cantor e guitarrista desbravou novos horizontes para o rock.
Sua contemporânea Janis Joplin (1943-1970) também teve sua voz caracterizada
por essa fusão rítmica.
Houve,
ainda, o acid rock, que reproduzia os aspectos auditivos e as sensações
da experiência psicodélica com as drogas, com o surgimento de espaços musicais
amplos e abstratos e o uso de sonoridades estranhas. Entre os expoentes do acid
rock, está o grupo The Doors, capitaneado por Jim Morrison (1943-1971),
considerado um dos principais difusores do LSD e um dos fundadores do
psicodelismo, vertente roqueira inspirada na ação liberadora da droga.
Na
Inglaterra, o LSD também influiu na música, ocasionando a expansão da
capacidade perceptiva das canções. Um exemplo dessa influência é o célebre
álbum dos Beatles, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, de 1967,
evidenciado, entre outros elementos psicodélicos, em uma de suas faixas, Lucy
in the sky with diamonds, título cujas iniciais formam a sigla LSD.
A
década de 1970 testemunhou a criação de uma nova tendência contracultural, o punk,
em função do descontentamento da juventude operária das grandes cidades. Esse
movimento se disseminou a partir de 1976, em repúdio ao desemprego e ao terror
na Europa. O estilo musical dos punks era elementar, com a reciclagem do
rock em três acordes. O punk tornou-se uma revolução mais pelo modo de
vida agressivo, por suas indumentárias e atitudes, do que por suas ideias ditas
“anarquistas”.
A
primeira fase do punk se encerrou em 1979. Porém, no início dos anos
1980, ele tornou-se mais conscientizador, mobilizador e vinculado aos jovens
proletários. Tanto os hippies quanto os punks, embora tenham
surgido em contextos diferentes e possuíssem características também diferentes,
propuseram buscar soluções aos modelos culturais clássicos impostos pela
sociedade.
O
sociólogo francês Michel Maffesoli propõe que o indivíduo estimule a aderir ou
a participar de pequenos grupos viscosos, conceituados pelo especialista como “tribalismo”.
Segundo ele, a ideia de tribalismo é uma consequência da vontade de estar
junto. Partindo desse conceito, ocorre a formação da cultura do sentimento, das
relações táteis e das relações coletivas de empatia.
Registros
de civilizações primitivas já demonstraram que, nas primeiras formas de
tribalização, a linguagem oral fez com que os processos de comunicação e
sobrevivência social se efetivassem. Portanto, essas civilizações organizavam
ritos onde todo o conhecimento era guardado na memória de cada pessoa,
repassando-o para as gerações que se seguiram.
Com
o aprimoramento das formas de interação social, ocasionado pelas contínuas
evoluções tecnológicas, provocou-se uma ruptura temporária com os fenômenos
anteriores de socialidade. Através da interconexão mundial de computadores,
ocorreu, na década de 1980, a retribalização da sociedade, que foi propiciada
pela suposta extinção da homogeneidade e do individualismo dos meios impressos.
Foi
no seio da pós-modernidade que se consolidou uma condição social retribalizada,
permitindo escapar do tempo e do espaço materiais. Essa mesma noção de
pós-modernidade, para Maffesoli, descreve o momento complexo que a sociedade
atravessa, ao resgatar a antiga prática da tribalização e vivenciar o hoje,
fenômeno denominado presenteísmo.
Por
meio da convergência local-global, a humanidade passa a conviver em um ambiente
social onde as dimensões estética e, principalmente, a hedonista interferem em
todos os aspectos da vida contemporânea. O hedonismo consiste na postura do
indivíduo de buscar o máximo de prazer em sua vida.
Entretanto,
esse tipo de comportamento é relacionado à procura do prazer instantâneo, no
qual o sujeito pós-moderno está voltado para o gozo a curto prazo e a qualquer
preço. Alguns exemplos desse prazer individualista são a redução da leitura e o
enaltecimento dos programas televisivos, a busca pelo prazer sexual como uma
atração carnal, o consumo de mercadorias e de produtos de entretenimento, entre
outros.
Conforme
Zygmunt Bauman, o fato de um membro ser rotulado como indivíduo faz parte da
sociedade moderna. A partir daí, o sociólogo polonês compreende o conceito de “individualização”
como algo bem diferente da “emancipação” do ser humano, parecendo significar a
extinção gradual da sua cidadania. Isso se traduz em um comportamento egoísta,
no qual uma pessoa não se importa em ajudar o outro.
Essa
definição de “individualismo” consiste na postura do indivíduo, influenciada
provavelmente pelo capitalismo contemporâneo, de estimular a materialização de
seus objetivos privados às custas do bem-estar de outras pessoas. As práticas
hedonistas relacionadas ao individualismo são aquelas em que uma pessoa obtém o
prazer de uma forma mais rápida e fácil possível.
Essa
natureza “individualista” e sua tradução no tipo de comportamento “hedonista” podem acontecer pelo conflito
com a sensação de “vazio” do sujeito e a cultura do efêmero, produzida pelo
capitalismo e pelas inovações tecnológicas. O medo da violência ou de outros
impactos ocasionados a partir do contato com a diferença, que adquire extrema
mobilidade com a globalização, também pode acarretar tal “individualismo”.
A
filosofia hedonista afeta não somente o interno, o íntimo, o psicológico, mas
também o externo, o público, o físico, o corpo, a pele, pois ela faz
transformá-los em objeto de prazer individual através do “modismo” das
modificações corporais, que se popularizaram a partir da segunda metade do
século XX, geralmente por força da mídia. Entre as práticas hedonistas
aplicadas ao corpo, estão as cirurgias plásticas, a lipoaspiração, os piercings,
a indústria da moda e as tatuagens.
Assim
como outros dispositivos hedonistas, a tatuagem transforma o corpo em um espaço
de arte corporal. Influenciada pelos ornamentos corporais de várias
civilizações primitivas, a body art elimina suportes comuns de aplicação
expressiva, fazendo com que os artistas se valham do seu próprio corpo para
construir significações e originando novas atitudes de pintura corporal.
Ao
transitar entre uma memória suave da organicidade humana e as situações
incômodas do cotidiano, o corpo, por meio da body art, às vezes se
mostra ferido, marcado e cru, mas belo sob um ponto de vista poético. Todos os
artefatos hedonistas fazem da pele um limite entre natureza e cultura, o
interno e o externo, o eu e o outro; em síntese, o domínio privilegiado das
identidades.
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