Um ícone pós-moderno

Dentre as inúmeras construções arquitetadas por Diógenes Rebouças, está o Edifício Comendador Urpia, na Graça, inaugurado em 1957
(Foto: Hugo Gonçalves)

Significativa parcela das edificações erguidas na terceira maior cidade brasileira entre as décadas de 1940 e 1960 coube aos esboços formatados e saídos das pranchetas de um dos cativantes cérebros da arquitetura pós-moderna baiana: Diógenes de Almeida Rebouças (1914-1994). O seu legado persevera, sobretudo, na genialidade, na sutileza e na simplicidade construtivas. Entretanto, a maioria do nosso povo penetrado em um território de dimensão artística incrivelmente formosa e charmosa não sabe quem foi Diógenes Rebouças, quais as suas contribuições para a modernização da feitura arquitetônica e urbanística, quais os edifícios – existem dezenas – que ele idealizou e/ou recuperou, em essencial em bairros do centro da capital.

Filho de cacauicultores do sul do estado, o jovem Rebouças exerceu sua proveitosa e apaixonante vocação após ser diplomado engenheiro agrônomo pela Escola Agrícola da Bahia, em 1933, onde mergulhou profundamente nas noções de topografia. A despeito de ser modernista, não estudou no Rio de Janeiro, como fez a maioria dos seus colegas de profissão. Seu primeiro projeto como arquiteto, na época atividade ainda não reconhecida na comunidade acadêmica, foi a Catedral de Itabuna, o que despertou a atenção do engenheiro sanitarista Mário Leal Ferreira, credenciando Rebouças a elaborar, sob a sua supervisão, os jardins do entorno do que seria o estádio da Fonte Nova, uma das suas retumbantes concepções.

Pelo estreito elo com Ferreira, assumiu, a convite do engenheiro que empresta nome a uma das mais importantes avenidas soteropolitanas, o setor paisagístico e de planejamento físico do Escritório do Plano Urbanístico da Cidade do Salvador (Epucs), em 1943. Rebouças colaborou, a partir daquele ano, no radical aprimoramento da paisagem urbana através da sua detalhada exploração, transformando-o no mais prestigiado profissional de sua área na Bahia. Apenas em 1947, quando Mário Leal Ferreira morreu, seu discípulo, na época com 33 anos, herdou o cargo em que seu ex-patrão exercia, o de coordenador do Epucs. Foi nessa fase em que ele começou a projetar edifícios de funcionalismo sofisticado, símbolos de uma urbe de feição colonial em sintonia com o hodierno.

Constantemente influenciado pelas Escolas Carioca, cujos expoentes-mores são Lúcio Costa e o centenário Oscar Niemeyer, e Paulista, insinuou aqui a sofisticada geometria concebida e contextualizada por seu contemporâneo, mestre gerador de constelações de concreções difundidas nacional e internacionalmente. As consonantes retas e curvas sinuosas niemeyerianas marcam acentuada presença nas engenhosas solidificações à base de ferro, concreto e tijolo dos esboços imprimidos por Rebouças, condizentes com o relevo acidentado de Salvador. Nas construções idealizadas por ele, como o Hotel da Bahia, no Campo Grande, a Escola Parque, na Caixa d'Água, e a Escola Politécnica, na Federação, é possível elucidar seus traços de vanguarda.

Diógenes Rebouças formou-se em Arquitetura pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 1952. A despeito da federalização do curso, obtida naquele ano, ainda não havia no estado uma faculdade autônoma específica, o que só se deu de fato em 1959. Logo depois de receber o diploma de curso superior em Arquitetura, tornou-se docente, ainda na mesma escola em que se graduou, transferindo-se para a Faculdade de Arquitetura propriamente dita quando ela foi fundada pelo professor Edgard Santos, primeiro reitor da Ufba, em 1959. Durante 32 anos, até 1984, ele lecionou infatigavelmente, auxiliando na formação de novas safras de desenhistas da construção civil. Também instituiu a seção baiana do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), em 1954, do qual foi o pioneiríssimo presidente.

Uma de suas obras imponentes, o Estádio Octávio Mangabeira, inesquecível ferradura de concreto intimamente apelidada Fonte Nova, foi implodida em 29 de agosto deste ano, objetivando cimentar uma novíssima arena com vistas à Copa de 2014, conforme padrões de Primeiro Mundo. Inaugurada em janeiro de 1951 e reaberta após remodelação e execução do anel superior, em março de 1971, intervenção atribuída a Rebouças com colaboração de seu ex-aluno Heliodório Sampaio, a Fonte Nova era palco de rivalidades marcadas por centenas de emoções e comoções. A antiga arena foi sucumbida após tragédia que deixou 7 torcedores mortos durante o jogo Bahia x Vila Nova (Goiás), em 25 de novembro de 2007, pela Série C do Campeonato Brasileiro de futebol, passaporte para o retorno à segunda divisão.

A filosofia de um emblemático e visionário educador, Anísio Teixeira, tem como síntese o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, ou Escola Parque, projetada por Rebouças e pelo paulista Hélio Duarte e implantada em uma das localidades mais populosas de Salvador, a Caixa d'Água. Com uma ambiciosa metodologia instrutiva preconizada por Anísio, em consonância com os traços poligonais refinados do arquiteto, a Escola Parque, entregue ao povo baiano em 1950, serviu como modelo, três décadas mais tarde, para os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps) do Rio de Janeiro. Na fachada, pinturas de Mário Cravo Júnior, Carybé e Jenner Augusto, entre outros artistas plásticos, embelezam, com capricho e precisão, o edifício geometricamente multiforme.

Linhas retas e linhas curvas se entrecruzam no suntuoso Hotel da Bahia, mais uma concretude genial mentalizada em 1947 por Rebouças em comunhão com Paulo Antunes Ribeiro, e solidificada em 1952. Parte do seu feitio original foi modificada na reforma e ampliação da hospedaria, entre 1981 e 1984, supervisionadas pelo próprio arquiteto idealizador. Outras espantosas obras creditadas a Rebouças também são eternizadas para a posteridade. Edifícios residenciais, como o Comendador Urpia, na Graça, entregue em 1957, com seus múltiplos pilares de sustentação em V inspirados em Niemeyer e alternância de balcões de apartamentos e gradis na sua fachada, e corporativos, com ênfase para a antiga sede do Banco do Estado da Bahia, erguida no Comércio, importante polo empresarial da época.

Além disso, Diógenes Rebouças encomendou à Ufba os prédios da Escola Politécnica e da Faculdade de Arquitetura, ambos na Federação, e projetou, em parceria com o colega Assis Reis, a Estação Marítima Visconde de Cairu, inusitada edificação em concreto armado anexa ao porto de Salvador e inaugurada em 1963, e o antigo Terminal Rodoviário, nas Sete Portas, concluído no mesmo ano. O longo e venerável currículo de Rebouças não se confina à arquitetura, ao urbanismo e ao modernismo. Era um multiartista dedicado e adorado, ultrapassando as barreiras do sólido retratado nas suas construções comerciais, culturais e habitacionais. Reproduziu, munido de tela, pincel e tintas pigmentadas, as paisagens soteropolitanas do século XIX nos quadros.

Com exceção do legendário estádio da Fonte Nova, as obras do maior expoente da arquitetura contemporânea baiana em meados do século XX continuam praticamente intactas em sua plenitude em Salvador e, raramente, em outros municípios do estado. Devemos reverenciar a valiosa memória de Rebouças, bem como o aperfeiçoamento topográfico e paisagístico da cidade que ele ajudou a implantar e as convergências e os arranjos embutidos em seus edifícios pós-modernos, numa terra exuberante onde a pluralidade artística permeia bravamente. O responsável pela vinda da filosofia e da morfologia niemeyerianas na Bahia, através dos seus gestos, projetos, excentricidades e sensibilidades contextuais, soa contemporâneo até hoje.

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