Reunião na Unijorge relembra a ditadura
Sociólogo, jornalista e historiador discutiram hoje em mesa-redonda as consequências e os reflexos do regime militar brasileiro e as lutas populares em defesa da liberdade
A Bahia é um dos estados brasileiros onde há poucas pesquisas a respeito de um período de obscurantismo e repressão, a ditadura militar, perseverante por 20 anos ininterruptos, com generais-presidentes revezando-se no poder, suas brutais consequências e seus reflexos na cultura e na sociedade. Para explaná-las de maneira concisa, foi ministrada, na manhã de hoje, uma mesa-redonda sobre o tema, no Campus Paralela do Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge). O evento esclarecedor era parte integrante do V Encontro Interdisciplinar de Cultura, Tecnologias e Educação (Interculte), ciclo de eventos realizado pela instituição de ensino superior.
Da esquerda para a direita, Sílvio Benevides, Márcia Guena e Grimaldo Zachariadhes, participantes da mesa-redonda "A Ditadura Militar Brasileira e os Movimentos de Resistência no Contexto Global e Local"
(Foto: Hugo Gonçalves)
A Bahia é um dos estados brasileiros onde há poucas pesquisas a respeito de um período de obscurantismo e repressão, a ditadura militar, perseverante por 20 anos ininterruptos, com generais-presidentes revezando-se no poder, suas brutais consequências e seus reflexos na cultura e na sociedade. Para explaná-las de maneira concisa, foi ministrada, na manhã de hoje, uma mesa-redonda sobre o tema, no Campus Paralela do Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge). O evento esclarecedor era parte integrante do V Encontro Interdisciplinar de Cultura, Tecnologias e Educação (Interculte), ciclo de eventos realizado pela instituição de ensino superior.
Batizada "A Ditadura Militar Brasileira e os Movimentos de Resistência no Contexto Global e Local", a mesa-redonda foi proferida pelo sociólogo e professor da Unijorge Sílvio Benevides, pela jornalista e professora da Unijorge e da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Márcia Guena, e pelo historiador, especialista em Educação pela Uneb e coordenador do Núcleo de Estudos sobre o Regime Militar (Nerm), Grimaldo Zachariadhes. Uma das razões justificadoras da criação do Nerm, cujo propósito é incentivar os estudos sobre o regime na Bahia, é que, no Nordeste, o estado está anos-luz atrás de Pernambuco nas pesquisas.
O encontro foi fragmentado em três partes, cada uma explicada individualmente por um participante. Grimaldo, também mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e professor de História da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, foi o primeiro a pronunciar, em meio a uma plateia constituída por 11 espectadores, sendo 9 estudantes, acompanhados dos dois organizadores. Quando iniciou-se o evento, Grimaldo agradeceu especialmente a Sílvio e a Márcia pelo honroso convite. Apesar de a ditadura cessar em 1985, seus métodos escusos, a exemplo do lendário Serviço Nacional de Informações (SNI), foram extintos tempos depois.
Grimaldo Zachariadhes apresentou, em datashow, reprodução digitalizada de uma nota publicada no extinto Jornal da Bahia, de 7 de abril de 1987, noticiando o recebimento do título de Cidadão de Salvador ao ex-abade beneditino Dom Timóteo Amoroso Anastácio (1910-1994). A cerimônia foi realizada no plenário da Câmara Municipal, com a ilustre presença da então deputada federal constituinte Lídice da Mata, autora da proposta quando exercia mandato de vereadora. Propaganda forjada no primeiro ano da ditadura militar não pôde faltar espaço na mesa-redonda: o historiador exibiu um anúncio da Ultragaz, com o título Chama da paz e da esperança, contendo mensagem inspirada em discurso favorável ao regime recém-instaurado.
Brega era vinculado à ditadura
Na esfera cultural, em particular na música, o gênero popularesco, rotulado vulgar e pejorativamente de brega ou cafona, encontrava-se atrelado ao regime ditatorial, disseminando artistas como Waldick Soriano, Reginaldo Rossi, Odair José, Dom e Ravel e Luiz Ayrão. Este último compôs, em 1977, o samba Treze anos, cujo título foi intencionalmente trocado para O divórcio, uma manobra para driblar a censura imposta. Coincidentemente, a canção fez sucesso no mesmo ano em que a lei do divórcio foi aprovada no Congresso Nacional.
Como contraponto à política oficial de planejamento familiar, Odair José criou e interpretou Uma vida só (Pare de tomar a pílula), lançada em 1973 e que, apesar de ser proibida, tornou-se num dos seus estrondosos sucessos de sua carreira. Pare de tomar a pílula, como a música ficou consagrada pelo refrão, foi interditada em toda a América Latina por pressão do laboratório alemão Bayer, principal fabricante da pílula anticoncepcional. O medicamento revolucionou a emancipação feminina, sendo considerada, na opinião de Márcia Guena, um "elemento de libertação". No auge do "milagre econômico", Jorge Ben Jor, na época somente Jorge Ben, assinou a ufanista Brasil, eu fico, interpretada pelo saudoso Wilson Simonal.
Os membros do Tropicalismo, ou Tropicália, eram, segundo Sílvio Benevides, a "turma do desbunde", pois era um movimento que impactava a efervescência artística do final dos anos 60, cuja práxis era uma manifestação cultural de protesto à ordem vigente naquele período no Brasil. O uso da guitarra elétrica, ainda conforme o sociólogo, era abominável para as esquerdas por ser um instrumento argolado ao imperialismo dos Estados Unidos e às suas influências na nossa produção musical. A historiografia da Música Popular Brasileira está entrando no século XXI, enterrando o "cheiro de naftalina", conforme os dizeres de Grimaldo.
Investigando os horrores
Márcia Guena, jornalista e pesquisadora das ditaduras militares latino-americanas, foi a segunda oradora da mesa-redonda. Autora do livro-reportagem Arquivo do horror: documentos secretos da ditadura do Paraguai (1960-1980) (1996), que focaliza o processo de abertura dos arquivos da ditadura do general Alfredo Stroessner, ela devota os estudos sobre o equivalente brasileiro ao ver, entre outras obras, o dossiê Brasil: nunca mais (1985), organizado pela Arquidiocese de São Paulo, com prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns, e o filme Zuzu Angel (2006). Hoje, Márcia, além de ensinar na Unijorge, cursa doutorado em História da América na Universidade Complutense de Madri, na Espanha, desde 2006, e, há um mês, leciona para turmas do curso de Jornalismo no campus de Juazeiro da Uneb.
Ela, como sectária das causas sociais, ainda enfatizou o combate e a denúncia às práticas discriminatórias contra a população negra, citando o papel do Movimento Negro Unificado (MNU). Fundado em 1978, o MNU tem como objetivos denunciar o preconceito racial e melhorar as condições vitais dos negros. O crescimento gradativo da entidade foi alcançado com o auxílio, entre outras, do Partido dos Trabalhadores (PT). De acordo com Sílvio, organizador da mesa-redonda ao lado de Márcia Guena, a abolição da escravatura foi uma benevolência da elite branca, congratulando os senhores de escravos.
Devido a problemas de indisponibilidade em documentações na Bahia, Márcia dirigiu-se ao antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão encarregado da repressão a subversivos, sediado em São Paulo, para levantar documentos referentes à participação de militantes negros na esquerda organizada. A partir de 1973, grupos guerrilheiros foram dizimados pelo recrudescimento do draconiano aparato repressivo do Exército e de centros de informações das Forças Armadas – Exército (Ciex), Marinha (Cenimar) e Aeronáutica (Cisa). "O que estava posto na década de 70 foram grupos de esquerda e de direita", discursa Márcia, que também é autora da dissertação de mestrado em Integração da América pela Universidade de São Paulo (USP), tendo como enfoque a Operação Condor, conexão clandestina entre as polícias políticas do Cone Sul.
Civil-militar
Recapitulando, o golpe de 1964 era fruto de um conchavo entre membros civis e militares, portanto não era estritamente articulado pelas Forças Armadas, era civil-militar. Mestre em Ciências Sociais pela Ufba, cuja dissertação germinou o livro Na contramão do poder: juventude e movimento estudantil (2006), Sílvio Benevides encerrou o ciclo discursivo na mesa-redonda acerca da ditadura. Sílvio salientou que países latino-americanos têm predileção por regimes de exceção, caso recente do Equador. A partir de 1964, a tortura passou a ser democrática no Brasil, atingindo até as elites. Em analogia às demais nações da América Latina, como a Argentina, o Chile e o Paraguai, o regime ditatorial brasileiro não era tão terrível quanto naqueles países.
Debates terminaram a mesa-redonda entre os três participantes, abrindo uma discussão concernente e intrínseca ao tema, com intervenções dos estudantes. Num dos debates, Grimaldo Zachariadhes afirmou que, na região Centro-Sul, os estereótipos ecoam sobre os imigrantes nordestinos – "paraíbas" no Rio de Janeiro e "baianos" em São Paulo. O historiador e coordenador do Nerm frisa a sua expansão: "O núcleo está se ampliando, e agora está fazendo parte do Projeto Memórias Reveladas, de abertura dos arquivos do regime militar, do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro".
Grimaldo Zachariadhes apresentou, em datashow, reprodução digitalizada de uma nota publicada no extinto Jornal da Bahia, de 7 de abril de 1987, noticiando o recebimento do título de Cidadão de Salvador ao ex-abade beneditino Dom Timóteo Amoroso Anastácio (1910-1994). A cerimônia foi realizada no plenário da Câmara Municipal, com a ilustre presença da então deputada federal constituinte Lídice da Mata, autora da proposta quando exercia mandato de vereadora. Propaganda forjada no primeiro ano da ditadura militar não pôde faltar espaço na mesa-redonda: o historiador exibiu um anúncio da Ultragaz, com o título Chama da paz e da esperança, contendo mensagem inspirada em discurso favorável ao regime recém-instaurado.
Brega era vinculado à ditadura
Na esfera cultural, em particular na música, o gênero popularesco, rotulado vulgar e pejorativamente de brega ou cafona, encontrava-se atrelado ao regime ditatorial, disseminando artistas como Waldick Soriano, Reginaldo Rossi, Odair José, Dom e Ravel e Luiz Ayrão. Este último compôs, em 1977, o samba Treze anos, cujo título foi intencionalmente trocado para O divórcio, uma manobra para driblar a censura imposta. Coincidentemente, a canção fez sucesso no mesmo ano em que a lei do divórcio foi aprovada no Congresso Nacional.
Como contraponto à política oficial de planejamento familiar, Odair José criou e interpretou Uma vida só (Pare de tomar a pílula), lançada em 1973 e que, apesar de ser proibida, tornou-se num dos seus estrondosos sucessos de sua carreira. Pare de tomar a pílula, como a música ficou consagrada pelo refrão, foi interditada em toda a América Latina por pressão do laboratório alemão Bayer, principal fabricante da pílula anticoncepcional. O medicamento revolucionou a emancipação feminina, sendo considerada, na opinião de Márcia Guena, um "elemento de libertação". No auge do "milagre econômico", Jorge Ben Jor, na época somente Jorge Ben, assinou a ufanista Brasil, eu fico, interpretada pelo saudoso Wilson Simonal.
Os membros do Tropicalismo, ou Tropicália, eram, segundo Sílvio Benevides, a "turma do desbunde", pois era um movimento que impactava a efervescência artística do final dos anos 60, cuja práxis era uma manifestação cultural de protesto à ordem vigente naquele período no Brasil. O uso da guitarra elétrica, ainda conforme o sociólogo, era abominável para as esquerdas por ser um instrumento argolado ao imperialismo dos Estados Unidos e às suas influências na nossa produção musical. A historiografia da Música Popular Brasileira está entrando no século XXI, enterrando o "cheiro de naftalina", conforme os dizeres de Grimaldo.
Investigando os horrores
Márcia Guena, jornalista e pesquisadora das ditaduras militares latino-americanas, foi a segunda oradora da mesa-redonda. Autora do livro-reportagem Arquivo do horror: documentos secretos da ditadura do Paraguai (1960-1980) (1996), que focaliza o processo de abertura dos arquivos da ditadura do general Alfredo Stroessner, ela devota os estudos sobre o equivalente brasileiro ao ver, entre outras obras, o dossiê Brasil: nunca mais (1985), organizado pela Arquidiocese de São Paulo, com prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns, e o filme Zuzu Angel (2006). Hoje, Márcia, além de ensinar na Unijorge, cursa doutorado em História da América na Universidade Complutense de Madri, na Espanha, desde 2006, e, há um mês, leciona para turmas do curso de Jornalismo no campus de Juazeiro da Uneb.
Ela, como sectária das causas sociais, ainda enfatizou o combate e a denúncia às práticas discriminatórias contra a população negra, citando o papel do Movimento Negro Unificado (MNU). Fundado em 1978, o MNU tem como objetivos denunciar o preconceito racial e melhorar as condições vitais dos negros. O crescimento gradativo da entidade foi alcançado com o auxílio, entre outras, do Partido dos Trabalhadores (PT). De acordo com Sílvio, organizador da mesa-redonda ao lado de Márcia Guena, a abolição da escravatura foi uma benevolência da elite branca, congratulando os senhores de escravos.
Devido a problemas de indisponibilidade em documentações na Bahia, Márcia dirigiu-se ao antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão encarregado da repressão a subversivos, sediado em São Paulo, para levantar documentos referentes à participação de militantes negros na esquerda organizada. A partir de 1973, grupos guerrilheiros foram dizimados pelo recrudescimento do draconiano aparato repressivo do Exército e de centros de informações das Forças Armadas – Exército (Ciex), Marinha (Cenimar) e Aeronáutica (Cisa). "O que estava posto na década de 70 foram grupos de esquerda e de direita", discursa Márcia, que também é autora da dissertação de mestrado em Integração da América pela Universidade de São Paulo (USP), tendo como enfoque a Operação Condor, conexão clandestina entre as polícias políticas do Cone Sul.
Civil-militar
Recapitulando, o golpe de 1964 era fruto de um conchavo entre membros civis e militares, portanto não era estritamente articulado pelas Forças Armadas, era civil-militar. Mestre em Ciências Sociais pela Ufba, cuja dissertação germinou o livro Na contramão do poder: juventude e movimento estudantil (2006), Sílvio Benevides encerrou o ciclo discursivo na mesa-redonda acerca da ditadura. Sílvio salientou que países latino-americanos têm predileção por regimes de exceção, caso recente do Equador. A partir de 1964, a tortura passou a ser democrática no Brasil, atingindo até as elites. Em analogia às demais nações da América Latina, como a Argentina, o Chile e o Paraguai, o regime ditatorial brasileiro não era tão terrível quanto naqueles países.
Debates terminaram a mesa-redonda entre os três participantes, abrindo uma discussão concernente e intrínseca ao tema, com intervenções dos estudantes. Num dos debates, Grimaldo Zachariadhes afirmou que, na região Centro-Sul, os estereótipos ecoam sobre os imigrantes nordestinos – "paraíbas" no Rio de Janeiro e "baianos" em São Paulo. O historiador e coordenador do Nerm frisa a sua expansão: "O núcleo está se ampliando, e agora está fazendo parte do Projeto Memórias Reveladas, de abertura dos arquivos do regime militar, do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro".
Comentários