Glória Maria morre deixando-nos um glorioso legado

Jornalista serviu de farol para sucessivas gerações de mulheres afrodescendentes Brasil afora, que observaram nela sua história, seu trabalho, sua luta e seu protagonismo
Renato Rocha Miranda/Reuters

Texto: Hugo Gonçalves, jornalista (SRTE/BA 4507)

Barra do Gil (Vera Cruz), 2 de fevereiro de 2023

Atualizado em 4 de fevereiro de 2023, às 13h18


Nós, operários da informação, estamos de luto em razão do falecimento, neste segundo dia de fevereiro, da jornalista Glória Maria – nossa simpática colega de profissão e primeira repórter e apresentadora negra da televisão brasileira. Considerada um dos ícones do telejornalismo nacional por seu prestígio e sua magnitude, Glória serviu de farol para sucessivas gerações de mulheres afrodescendentes Brasil afora, que observaram na profissional a sua história, o seu trabalho, a sua luta contínua e o seu protagonismo face ao perverso racismo estrutural que ainda acomete todas as dimensões da nossa plural sociedade.

Carioca de Vila Isabel, filha de uma dona de casa e um alfaiate, Glória Maria da Matta Silva sempre fez jus ao seu prenome inclusive nos primórdios do seu ofício, durante a sua juventude. Isso justamente em uma época em que as pessoas negras, especialmente as do sexo feminino, ainda exerciam papéis secundários, pois homens brancos dominavam (e até hoje dominam) disparado o mercado da comunicação social. Em suas mais de cinco décadas ininterruptas na TV Globo, ela se notabilizou por conduzir jornalisticamente centenas de episódios memoráveis, entre coberturas emblemáticas, aventuras heroicas e entrevistas antológicas.

Além disso, e sobretudo, a longeva e prestigiada trajetória de Glória Maria também se transformou em sinônimo de pioneirismo. Nessa perspectiva, a então moça de origem humilde seguiu audaciosa como a primeira repórter do Brasil a aparecer nas telas, além de estrear uma entrada ao vivo e em cores no Jornal Nacional. Glória também noticiou conflitos e eventos esportivos, entrevistou personalidades nacionais e internacionais dos mais diversos campos de atuação e cruzou todo o planeta se aventurando em fascinantes (e arriscadas) jornadas em mais de 100 países, conhecendo diferentes paisagens, pessoas, povos e culturas. Foi, ainda, responsável pela primeira transmissão em alta definição (HD) da TV brasileira.

Glória Maria foi uma obstinada guerreira e desbravadora à frente do seu tempo. Uma vez que os caminhos percorridos pelas sujeitas que, simultaneamente, se reconhecem como femininas e negras nunca foram fáceis, a jornalista teve que enfrentar diversos obstáculos ao longo do seu itinerário, que nem sempre foi impregnado somente de glórias. Em 1980, por exemplo, um funcionário de um hotel de luxo na cidade do Rio de Janeiro a impediu de entrar no local, em virtude da dupla carga discriminatória sofrida pela repórter – ser mulher e ser preta.


Ao morrer, a primeira mulher negra que teve a colossal Glória (em inicial maiúscula) de marcar o seu nome no panteão do nosso telejornalismo deixou órfãs duas filhas
Reprodução/Acervo Grupo Globo


Mas Glória, tanto na sua vida pessoal quanto no exercício da sua profissão, prosseguiu ativa e operante em sua resistência às hostilidades frutificadas pelo maligno preconceito racial. E também no combate a outro adversário, o câncer, diagnosticado em 2019, cujos tratamentos iniciais com imunoterapia haviam sido bem-sucedidos. Porém, já que a doença detectada no pulmão se evoluiu com o passar dos anos, originando uma metástase no cérebro – que também foi tratada com êxito –, não resistiu às sequelas causadas por novos tumores e veio a falecer na manhã desta quinta-feira, enquanto estava internada em um hospital na zona sul da capital fluminense.

Ao morrer fisicamente, a primeira mulher negra que teve a colossal Glória (em inicial maiúscula) de marcar o seu nome no panteão do nosso telejornalismo deixou órfãs duas filhas adolescentes, Maria e Laura, que ela adotou em 2009, aqui mesmo na Bahia. Foi no estado com a maior população afrodescendente do Brasil onde ela realizava um trabalho voluntário e cultivava um apaixonante relacionamento de aproximação e amizade, enquanto estava afastada temporariamente da nossa TV.

O sublime legado de Glória Maria, imbuído de vanguarda, heroísmo e relevância, se traduz – e continua se traduzindo – em modelo e inspiração para constelações de jornalistas afro-brasileiras que se multiplicaram em temporalidades posteriores. Entre elas, Maria Júlia Coutinho (Maju), Flávia Oliveira, Aline Midlej, Cynthia Martins, Joyce Ribeiro, Cris Guterres, Dulcineia Novaes, Tarsilla Alvarindo, Wanda Chase, Luana Assiz, Maria Lorena Alves, Vânia Dias, Natália Carneiro... São profissionais da notícia como essas, que vêm se fertilizando dentro de um mercado majoritariamente branco e machista, graças, entre outros fatores, ao exemplo magistral de Glória.

Como jornalista e colega de ofício, tenho a honra de encerrar este artigo-tributo expressando minhas profundas condolências aos colegas, amigos e familiares desse símbolo de grande valor que contribuiu na construção da história do jornalismo televisivo brasileiro, imprimindo um estilo próprio de noticiar os fatos e de ultrapassar os limites do factual para milhões de lares, pela sua triste partida. Que as próximas gerações de mulheres pretas do nosso País se inspirem nas gloriosas lições de Glória Maria, visando a conquistar inéditos e também inexploráveis espaços diante das câmeras, sejam em estúdios ou externas, embora em um ambiente árduo, estreito e hostil.

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