Desmatamento na Amazônia pode favorecer surgimento de novas zoonoses

Conforme revela estudo, intervenções humanas na maior floresta tropical do mundo elevam chances de emergência e propagação de doenças infecciosas transmitidas por microrganismos de animais

Hugo Gonçalves, jornalista (SRTE/BA 4507)

Barra do Gil (Vera Cruz), 6 de fevereiro de 2023

Com informações da matéria exibida no Repórter Eco, da TV Cultura, e da Agência Bori

Matéria atualizada em 7 de fevereiro de 2023, às 19h08

 

Devastação do maior bioma do Brasil segue aceleradamente, abrindo terreno para atividades como agropecuária, mineração, rodovias e hidrelétricas
Divulgação/Amazônia Real

 

Um artigo científico recente demonstra que as intervenções humanas nos ecossistemas, com ênfase na Amazônia, que vem sofrendo com o desmatamento, impactam diretamente o equilíbrio nesses ambientes naturais. Tais interferências, segundo o estudo, aumentam as chances de risco de a maior floresta tropical do planeta se tornar propícia para o aparecimento de novas doenças infecciosas transmitidas de animais para humanos – as chamadas zoonoses.

Na Floresta Amazônica brasileira, a devastação segue em ritmo acelerado, pavimentando terreno para atividades econômicas como a pecuária, a monocultura extensiva da soja, a caça ilegal e a mineração, além da abertura de rodovias e da construção de usinas hidrelétricas. Essas são algumas das ações promovidas sistematicamente pelo ser humano que acarretam danos irreversíveis ao bioma, colocando-o em perigo, assim como a biodiversidade e, claro, a saúde da própria população local.

Tendo como autor principal o biólogo Joel Henrique Ellwanger, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o artigo publicado nos Anais da Academia Brasileira de Ciências resultou de um esforço colaborativo de 19 pesquisadores nacionais e internacionais de múltiplas áreas do conhecimento – ecologistas, virologistas, geneticistas, imunologistas e historiadores –, que realizaram uma síntese das associações observadas entre os distúrbios ambientais relevantes causados pela ação humana e o risco de doenças zoonóticas inéditas emergirem e se propagarem.

“Na primeira parte do trabalho, nós fizemos uma revisão geral, considerando diferentes biomas, tanto brasileiros quanto ecossistemas em outros países. A segunda parte do artigo tem foco especificamente no Brasil e na Floresta Amazônica”, afirmou o biólogo, em entrevista ao programa semanal Repórter Eco, exibido na TV Cultura de São Paulo e emissoras afiliadas.

Os resultados do estudo interdisciplinar sinalizam que diferentes intervenções em habitats naturais podem viabilizar o surgimento de zoonoses. “Quando acontece a interferência, principalmente uma interferência direta da população humana nesses ambientes naturais, há uma quebra de uma série de serviços ecossistêmicos e de controles ecológicos. Isso aumenta as chances de um patógeno emergir da floresta e atingir a população humana”, alertou Ellwanger.

De uma espécie para outra

O trabalho também aborda um fenômeno conhecido por spillover ou transbordamento zoonótico, que consiste no salto de microrganismos alojados em animais silvestres para outras espécies, geralmente humanos, ocasionando surtos, epidemias ou até pandemias.

“O spillover pode envolver uma espécie A e uma espécie B – um patógeno sendo transmitido de A para B –, mas ele também pode envolver uma espécie intermediária. Nesse caso, o patógeno vai ser transmitido da espécie A para uma intermediária, que seria B, e então saltar para a espécie C, que pode ser um humano, por exemplo”, explicou o coautor do artigo.

Conforme aponta o presente estudo, no Brasil, o desmatamento – especialmente da Amazônia e da Mata Atlântica –, é o principal determinante na incidência de possíveis transbordamentos de patógenos como vírus, bactérias e protozoários. Logo, a destruição dos biomas florestais do País ocasiona uma série de outros impactos ambientais, entre eles a supressão de espécies e de serviços ecossistêmicos, fazendo com que a probabilidade de as zoonoses aparecerem cresça exponencialmente.

Além disso, o artigo científico revela que a biodiversidade consiste em um fator substancial no controle de patógenos na natureza. Apesar de implicar, por uma perspectiva, a abundância de agentes infecciosos ou de vetores nos ecossistemas, a biodiversidade, isoladamente, não é a causa do surgimento de novas patologias zoonóticas.

Com vistas a elucidar essa questão, os acadêmicos trazem o conceito de “efeito diluição”, segundo o qual ecossistemas com alta biodiversidade diluem a densidade de hospedeiros e vetores que possuem competência e capacidade de gerar doenças, minimizando o contato entre eles, além de aumentar a quantidade de predadores e competidores. Esse fenômeno objetiva mitigar o risco de propagação de novas zoonoses e constituir, desse modo, um escudo em benefício da saúde pública.

“Em um ambiente biodiverso, com toda essa diversidade de espécies, as espécies de maior risco para a população humana estão diluídas. Isso diminui a chance de, por exemplo, de um vetor, que pode ser um mosquito ou um carrapato, se alimentar do sangue dessa espécie, e então transmitir uma doença para um humano”, comentou Joel Ellwanger, da UFRGS, à TV Cultura.

 

Apesar de reter biodiversidade, Floresta Amazônica é, ao mesmo tempo, alvo de constantes interferências humanas
Reprodução/Fundo Amazônia

 

Uma nova crise sanitária?

No artigo, os estudiosos demonstraram ainda a posição de destaque ocupada pela Amazônia no debate, já que ao mesmo tempo se trata de um habitat que retém elevada biodiversidade e é objeto de constantes interferências humanas, o que torna viável a ocorrência de eventos de salto de hospedeiro. A junção de ambos os fatores transforma o maior bioma do País em potencial cenário para a manifestação de novas zoonoses, que podem se tornar o próximo problema sanitário em âmbito global.

“Basicamente, podemos dizer que o Brasil está ‘brincando com fogo’. Nós estamos interferindo muito em um ambiente que deveria ser deixado com o menor nível de intervenção humana possível. O ser humano faz parte da natureza. Então, nós podemos e a gente deve interagir com o nosso ambiente natural. O problema são justamente esses grandes empreendimentos, que interferem e impactam de maneira robusta o ambiente florestal”, disse o pesquisador.

Pelo fato de o País concentrar em seu território grande parte da Floresta Amazônica, o estudo salienta ainda a importância do governo federal em assumir o protagonismo na implementação de políticas públicas visando à preservação do ecossistema. Esse feito não é inédito na história brasileira, mas nos quatro anos anteriores tinha sido negligenciado, tendo como consequência o incremento vertiginoso dos índices de desmatamento na região, que abrange nove estados da Federação.

De acordo com Ellwanger, a redução dessas taxas seria uma saída mais urgente e ampla para evitar os problemas que afetam a biodiversidade e a saúde da população. “Controlar o desmatamento é imprescindível para mostrarmos para a comunidade internacional que o Brasil se importa de forma concreta com questões de interesse global e que o País está comprometido com o desenvolvimento sustentável. Sem isso, continuaremos colocando nossa biodiversidade e saúde em risco”, assinalou o biólogo à Agência Bori, serviço de jornalismo científico.

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