Bahia tem maior número de internações de bebês por desnutrição

Estado vem liderando ranking nacional, com 480 hospitalizações de crianças menores de um ano em decorrência da falta de alimentos, segundo pesquisa da Fiocruz; entre as capitais, Salvador também figura em primeiro no quesito

Hugo Gonçalves, jornalista (SRTE/BA 4507)

Barra do Gil (Vera Cruz), 16 de fevereiro de 2023

Com informações dos portais da Fiocruz e do jornal Correio*, e da matéria exibida no telejornal BATV, da Rede Bahia

Matéria atualizada em 18 de fevereiro de 2023, à 1h17

 

Meninos e meninas integram a parcela da população baiana que mais sente na pele o drama da fome todos os dias
Pixabay

 

Cerca de 2 milhões de baianos e baianas convivem diariamente com a fome, e a carência de alimentos e nutrientes aflige sobretudo as crianças, inclusive menores de um ano. Um novo levantamento do Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância), iniciativa conjunta da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Centro Arthur de Sá Earp Neto (Unifase), apontou a Bahia como o estado que concentra o maior número de internações de bebês no Brasil em decorrência da desnutrição, bem como de suas sequelas e deficiências nutricionais, acumulando 480 hospitalizações.

O contingente equivale a 17% das 2.754 internações de crianças entre 1 e 12 meses de vida pela mesma condição em todo o País, registradas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no ano passado. Desde 2016, a Bahia lidera nacionalmente o ranking nesse quesito – no ano anterior, Minas Gerais ocupou tal posição, seguida de São Paulo –, aumentando progressivamente o número de hospitalizações até 2021. Nesses seis anos, estimaram-se 330, 369, 466, 470, 598 e 618 internações. Apesar de nosso estado prosseguir na dianteira, houve, em 2022, uma queda de 22% dos casos.

Entre as crianças baianas diagnosticadas com desnutrição está um menino de 5 anos, que pesa 8 kg a menos do que o recomendado para a sua idade. Ele – cuja identidade não quer ser revelada –, e seus familiares moram no bairro de São Caetano, periferia da cidade de Salvador, sendo sustentados com uma renda mensal mínima de R$ 600. O recurso é oriundo do programa social Bolsa Família, do governo federal.

“A alimentação dele não é aquela alimentação forte. Tem que ser uma alimentação para ele forte. Eu fico preocupada com ele porque ele está magrinho, mas fazer o quê?”, questionou a mãe do menino, a dona de casa Eléia de Jesus, em depoimento concedido à equipe de reportagem da TV Bahia, afiliada local da Rede Globo.

Consolidado a partir de dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH), do Ministério da Saúde, extraídos em 29 de dezembro passado, o estudo do Observa Infância também detectou que Salvador figura em primeiro lugar no ranking de internações de crianças com idades inferiores a um ano entre as capitais, totalizando 159 ocorrências. Os municípios baianos que registraram as maiores hospitalizações de bebês desnutridos depois da capital foram Camaçari, com 11 internações, Simões Filho (20) e Lauro de Freitas (10) – todos situados na Região Metropolitana.

O coordenador do Observatório, Cristiano Boccolini, enfatizou a discrepância existente nas regiões (confira tabela ao final desta matéria) e cidades brasileiras no que se refere ao problema da má alimentação. “Enquanto o Nordeste registrou 1.175 hospitalizações em 2022, o Norte realizou 328 internações pelas mesmas causas no ano passado. Olhando para as capitais, temos Salvador com 159 hospitalizações e Cuiabá com apenas uma”, analisou Boccolini, também pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz).

Ainda de acordo com o cientista, esses indicadores permitem identificar certas zonas socialmente vulneráveis, denominadas por ele de bolsões de invisibilidade social. “São bolsões de extrema pobreza, ou seja, é como se fosse uma pontinha de um iceberg onde se vê um evento extremo, que é a hospitalização de um bebê por causa da desnutrição, por falta de comida”, examinou, em entrevista por videoconferência à TV Bahia.

 


Há sete anos, Bahia ocupa topo do ranking de internações de bebês desnutridos no País (no alto); além disso, sua capital Salvador está na mesma condição (acima)
Fonte: Observa Infância, com dados do SIH/Ministério da Saúde
Infográficos: Divulgação/Observa Infância/Fiocruz

 

Salvador: relação com situação social

Em Salvador, o dilema da desnutrição infantil é um impacto que estaria intrinsecamente ligado às condições sociais de uma significativa parte da sua população. Conforme estima uma pesquisa realizada pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) no âmbito do projeto QualiSalvador – rede interinstitucional de estudiosos que busca refletir acerca da capital baiana em escala intraurbana, no contexto de aprofundamento da crise urbano-ambiental –, 40,9% das famílias convivem com algum nível de insegurança alimentar na quarta cidade brasileira mais populosa, no período de 2018 a 2020.

Nesse último ano, os pesquisadores concluíram que 7,9% das famílias soteropolitanas sofrem com insegurança alimentar severa, que é a indisponibilidade de comida nos lares, segundo a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. Já as famílias que vivem em insegurança leve – circunstância relativa à incerteza sobre a capacidade de se obter alimentos – contabilizam 23,7%, ao passo que os 9,3% restantes enfrentam a insegurança alimentar em grau moderado, quando pelo menos uma das três refeições diárias (café da manhã ou desjejum, almoço e jantar) não é servida em suas mesas.

O levantamento da Ufba indica ainda que, em uma amostra constituída por 14 mil domicílios, 74,5% das famílias chefiadas por homens brancos apresentam melhor segurança alimentar. Metade das famílias residentes nos lares analisados é chefiada por mulheres negras (50,1%), percentual seguido por homens negros (35,4%) e mulheres brancas (8,3%). A quantidade de domicílios de Salvador que têm à frente homens brancos figura em último no recorte estatístico, computando 6,2%.

Retornando ao panorama estadual, quase 9 milhões de baianos, o que corresponde a mais da metade da nossa população, encontram-se em situação de insegurança alimentar. É o que detecta outro estudo divulgado pela Ufba, segundo o qual aproximadamente 2 milhões de pessoas continuam sendo acometidas pelo fantasma da fome em todo o estado.

 

Especialistas recomendam que leite materno seja administrado a menores de 6 meses para evitar desnutrição infantil
Badre Bahaji/Programa Mundial de Alimentos (WFP/ONU)

 

Internações resultam de sintomas

Em entrevista ao jornal Correio*, a endocrinologista Jacqueline Kalil caracteriza a desnutrição como a falta de nutrientes causada pela restrição no acesso a alimentos, assim como a dieta ou absorção inadequada, cujo diagnóstico se manifesta por meio de avaliação clínica. Para a especialista, os casos que culminam em internações são aqueles em que as crianças apresentam diversos sintomas como apatia, sonolência excessiva, irritabilidade, magreza, aparência envelhecida, ressecamento da pele e até sinais de fragilidade nas unhas e no cabelo.

A desnutrição também ocasiona grande redução de massa muscular e gordura, retardo no crescimento, alterações psicológicas, perda da pigmentação capilar, enrugamento da pele, anemia, entre outras sequelas que podem surgir à medida em que o problema se agrava. Por esse motivo, é aconselhável que a criança seja atendida por um pediatra regularmente.

O nutrólogo Rodrigo Pimentel salienta que existem diferentes tipos e graus de desnutrição. “O primeiro é a desnutrição do tipo marasmo, na qual a criança tem uma privação de calorias de forma geral. E, aí, a gente começa a perceber uma redução do peso, aquela criança que vai emagrecendo e vai perdendo peso de forma global. Existe um outro tipo de desnutrição, que é, sim, o mais comum na faixa etária da criança, que é o kwashiorkor. Então, é uma desnutrição essencialmente proteica; a criança deixa de ingerir proteínas e continua ingerindo outros tipos de fontes energéticas, como, por exemplo, os carboidratos e as gorduras”, explicou à TV Bahia.

Com o intuito de evitar a incidência do déficit alimentar e nutricional entre as crianças, especialistas orientam que o aleitamento materno seja administrado exclusivamente a menores de 6 meses de vida. Portanto, o leite materno é uma excelente fonte de nutrientes, como proteínas, vitaminas e minerais, que asseguram a saúde dos bebês em seus primeiros semestres. Terminado esse período, é possível introduzir na sua dieta alimentos saudáveis.

Outra recomendação importante é que os meninos e as meninas mantenham o acompanhamento pediátrico até os cinco anos de idade. Durante os seus primeiros seis meses, eles devem seguir uma conduta mensal para que sejam verificadas suas condições inerentes a peso, altura, vacinação e alimentação. Além disso, os médicos alertam acerca do consumo de alimentos industrializados – a exemplo de doces, biscoitos, salgadinhos, achocolatados, refrigerantes e sucos prontos –, por possuírem elevados teores de açúcares, gorduras e sódio.

“Se é a privação alimentar, do que as pessoas se alimentam? Daquele alimento mais barato, mais acessível e não necessariamente o mais saudável. Vamos considerar também, nessa conjuntura, os aumentos no custo dos alimentos e no valor da cesta básica, e a dificuldade de acesso a frutas, legumes e verduras. Isso significa que as crianças estão com a alimentação prejudicada. Elas estão deixando de comer”, adverte a pesquisadora Sandra Chaves, professora da Escola de Nutrição da Ufba e vice-coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), à TV Bahia.

Na opinião do gastropediatra Tiago Oliveira, alimentar as crianças de forma adequada e saudável não é uma tarefa impossível. “A principal fonte de alimentos está no que é natural, frutas e verduras; é de onde vêm os nutrientes importantes. Sei que vivemos num país muito desigual e isso não é problema resolvido muitas vezes pela vontade, mas é importante que, dentro da realidade de cada família, a gente busque melhores opções de alimentação e evite as mais prejudiciais”, endossou o especialista à reportagem do Correio*.

O que diz o Poder Público

A Secretaria Municipal da Saúde de Salvador (SMS) informou, em nota, que o município vem tentando amenizar os impactos da desnutrição infantil através de iniciativas de Atenção Primária à Saúde para a redução da morbimortalidade. Ademais, a pasta investe em programas como a Rede Cegonha, que visa a assegurar às mulheres o direito ao planejamento reprodutivo e, no caso das crianças, o direito do nascimento seguro e ao crescimento e desenvolvimento saudáveis.

“A gente faz um programa de Uapis, que são Unidades Amigas da Primeira Infância (em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Unicef), um atendimento todo especializado na assistência, na educação e na saúde. Nós temos um banco de alimentos, a gente fornece alimentos a instituições sociais e às comunidades lá nos locais mais carentes”, disse em depoimento à TV Bahia a titular da SMS, vice-prefeita Ana Paula Matos (PDT).

Já o governo da Bahia, mediante comunicado, declarou que vai intensificar os trabalhos de busca ativa, cujo objetivo é alcançar as famílias mais necessitadas. De acordo com a superintendente de Assistência Social da Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social (Seades), Leísa Sousa, é essencial firmar parcerias de integração entre o estado e os municípios, estes últimos encarregados no atendimento direto a essa parcela da população.

(Cabe) Ao estado apoiar os municípios para que eles realizem um bom serviço, apanhando as equipes a identificar as situações e os casos que são mais prioritários, e o atendimento na qualidade e quantidade necessárias para as nossas crianças e para as nossas famílias”, explicou a gestora estadual à TV Bahia.


Hospitalizações de crianças menores de um ano em 2022, por regiões e no Brasil

Fonte: Observa Infância, com dados do SIH/Ministério da Saúde
Arte: Hugo Gonçalves

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