Mercado à soteropolitana
É superfantástico observar a impressionante lucidez na guinada radical que está se manifestando no maior Carnaval do universo nos tempos hodiernos. De fato, refere-se a uma sofisticada explosão na esplêndida, apoteótica e magnífica festividade popular da cidade da Bahia. Comércio de abadás, invasão gritante de camarotes luxuosos no circuito alternativo, números musicais sendo executados em alta rotação nas estações radiofônicas e similares, esses itens, como se sabe, são frutos bem-sucedidos do show business baiano, plantados por ambiciosos e visionários empresários do setor, sejam proprietários de estúdios ou donos de blocos e bandas.
Gradativamente, a folia soteropolitana está corroendo suas raízes, ou melhor, sua originalidade e autenticidade artística e cultural, quando ela era voltada para as multidões numa época de neutralidade e vácuo comercial, com inesquecíveis marchinhas, o autêntico samba - tendo nosso estado como berço - e ritmos percussivos importados da África, aprimorados por percussionistas daqui. Era um estágio em que a pluralidade sonora dirigia-se, no sentido denotativo, ao povo de Salvador, embora excludente dos benefícios assistenciais. A elite, na contramão da monumental massa real, frequentava clubes carnavalescos tradicionais, com ênfase para o Cruz Vermelha, o Fantoches da Euterpe e o Inocentes em Progresso.
Naqueles espaços momentâneos remotos, o grosso da folia era nucleado no que hoje denomina-se Circuito Osmar, conexão entre o Campo Grande e a Praça da Sé, além da tradição histórica do Pelourinho, cujos estigmas são a nostalgia de antigos carnavais e o toque retumbante da percussão. Contudo, na folia contemporânea sobra um pouco dos seus primórdios, alheios ao orbe intuitivamente turístico-comercial, concentrado no Circuito Barra-Ondina, importante reduto de circulação de hóspedes. É nessa elitizada zona festeira, bem como suas circunvizinhanças, a orla marítima e seu entorno, onde o crescente supermercado do Carnaval, regular ou paralelo, está se transformando num ritual lucrativo, priorizando os blocos que estão em evidência.
A conversão do Carnaval de Salvador em grandioso elemento lúdico se deu, entre outros fatores afirmativos, ao florescimento de blocos e bandas de matriz africana (Filhos de Gandhy, Ilê Aiyê, Olodum, Malê de Balê, Muzenza, etc.), somado à ascensão de novos magnatas da nossa indústria do entretenimento, tendo como precursor o administrador de empresas e produtor musical Wesley Rangel. Fazendo jus às iniciais de seu nome - WR -, que batizam seu lendário estúdio, o maior e mais equipado do Norte/Nordeste, Rangel e equipe obtiveram papel crucial no impulsionamento fonográfico em território baiano, produzindo volumes estratosféricos de álbuns registrados por cantores e grupos locais.
O senso comum e a mídia atribuem a fundação, a paternidade e o pioneirismo do movimento conhecido contemporaneamente por axé music ou, abreviado, axé, ao cantor, compositor e multi-instrumentista Luiz Caldas, entretanto a gestação do esquema efetuou-se na década de 1970, quando lançaram seus pilares: as principais agremiações influenciadas pela sonoridade procedente das terras africanas. Tomamos como exemplos o Ilê Aiyê, inventado no Curuzu, Liberdade, em 1974; o Olodum, no Maciel-Pelourinho, em 1979; e o Malê de Balê, estabelecido por pescadores de Itapuã, em 1979. Um conjunto surgiu, na porção introdutória da temporalidade subsequente, misturando rock, forró e galope: o Chiclete com Banana, genuíno pontapé inicial para a escalada multiplicativa que conhecemos atual e habitualmente por axé.
Jovem, talentoso, eclético e versátil, o feirense Luiz Caldas, à frente do grupo Acordes Verdes, formado pelos próprios músicos do WR no primeiro quartel dos anos 1980, aperfeiçoou o estilo, com o jovial acréscimo do afoxé e de ritmos caribenhos à textura estética preestabelecida pelo Chiclete. O LP de estreia do músico, Magia, de fins de 1985, abriu as portas do inédito fenômeno tropical da Bahia ao mercado brasileiro via Fricote, ou Nega do cabelo duro, composição dele e de Paulinho Camafeu, canção que, apesar de polêmica, tornou-se um verdadeiro emblema. Seguindo o rastro do mestre Luiz, veio, a reboque, um comboio astral: Sarajane, Gerônimo, Banda Reflexu's, Cheiro de Amor, Ricardo Chaves, Margareth Menezes, Asa de Águia, Banda Beijo...
Dentro desse explícito modus operandi efervescente, o axé music - termo pejorativo cunhado em 1987 pelo jornalista roqueiro baiano Hagamenon Brito em alusão à irresistível manifestação rítmica nativa - ultrapassou divisas e fronteiras a partir da disseminação de micaretas de norte a sul do Brasil e megaespetáculos no país e no exterior. Acabou, portanto, sendo um movimento tipo exportação, contornando seu matiz e seu apelo estritamente comerciais. Obedecendo a esses signos, Salvador passou de fato por uma invasão inter-regional e alienígena nos circuitos do nosso Carnaval, intercâmbio de culturas, sons, tons, tonalidades, batuques, vertentes, timbres e tribos.
Sabemos, a priori, que os audaciosos magos do nosso show business colaboraram na expansão mercadológica carnavalesco-axezeira, mas eles tiveram o respaldo e o estímulo de conglomerados midiáticos locais e nacionais para divulgar o gênero híbrido de samba, rock, pop, reggae, afoxé e percussivo. Impulsionados por tal respaldo, uma safra genial de astros eclodiu nos decênios seguintes, em progressão geométrica, porém alguns deles não alcançaram êxito e mérito semelhantes. Os expoentes que se consagraram nessas fases foram Daniela Mercury, Carlinhos Brown, Ivete Sangalo, Saulo Fernandes, Cláudia Leitte, Alinne Rosa, Adelmo Casé, Tomate e companhia ilimitada.
Invenção do designer gráfico Pedrinho da Rocha, famoso por conceber capas de discos gravados por cantores e bandas da Bahia, datada de 1993, com o axé já ecoando em profusão onipresente em todos os âmbitos, o abadá entrou em cena, substituindo a obsoleta mortalha, como vestuário exclusivo dos foliões. A multicolorida indumentária, de uso obrigatório para quem sai em blocos, geralmente a coletividade juvenil, é espécie de passaporte do entusiasmo nos seis dias da folia soteropolitana. O boom do abadá ganhou potencial absoluto quando surgiram lojas especializadas - as renomadíssimas são a Central do Carnaval, chefiada pelo inteligente ex-professor Joaquim Nery Filho, fundador do Camaleão; a Axé Mix, controlada pelo grupo Caco de Telha; e o Reino da Folia, comandado pelo Asa de Águia, em referência a seu líder, Durval Lelys, o "Durvalino Meu Rei".
Unidas, as três gigantes detêm o oligopólio mercantil de artefatos carnavalescos de Salvador, cujo propósito é vender dias festivos em formato de abadá, simbolizando um rico sortimento de agremiações, guiadas por um único ou vários artistas, no mínimo dois ou três. Vemos, aliás, que o divertimento sublime do nosso calendário de festas populares apresenta natureza meramente comercial, turística e ainda publicitária, com a estratégia corporativa de fazer com que os Midas axezeiros lucrem bastante, em contínuo detrimento das massas, e de atrair viajantes oriundos de cidades, estados e nações diversificados, deslumbrados pela beleza e pelo clima da Boa Terra. A finalidade do Carnaval soteropolitano é a incrementação e o sacramento de seu aparato mercadológico elitizado.
Gradativamente, a folia soteropolitana está corroendo suas raízes, ou melhor, sua originalidade e autenticidade artística e cultural, quando ela era voltada para as multidões numa época de neutralidade e vácuo comercial, com inesquecíveis marchinhas, o autêntico samba - tendo nosso estado como berço - e ritmos percussivos importados da África, aprimorados por percussionistas daqui. Era um estágio em que a pluralidade sonora dirigia-se, no sentido denotativo, ao povo de Salvador, embora excludente dos benefícios assistenciais. A elite, na contramão da monumental massa real, frequentava clubes carnavalescos tradicionais, com ênfase para o Cruz Vermelha, o Fantoches da Euterpe e o Inocentes em Progresso.
Naqueles espaços momentâneos remotos, o grosso da folia era nucleado no que hoje denomina-se Circuito Osmar, conexão entre o Campo Grande e a Praça da Sé, além da tradição histórica do Pelourinho, cujos estigmas são a nostalgia de antigos carnavais e o toque retumbante da percussão. Contudo, na folia contemporânea sobra um pouco dos seus primórdios, alheios ao orbe intuitivamente turístico-comercial, concentrado no Circuito Barra-Ondina, importante reduto de circulação de hóspedes. É nessa elitizada zona festeira, bem como suas circunvizinhanças, a orla marítima e seu entorno, onde o crescente supermercado do Carnaval, regular ou paralelo, está se transformando num ritual lucrativo, priorizando os blocos que estão em evidência.
A conversão do Carnaval de Salvador em grandioso elemento lúdico se deu, entre outros fatores afirmativos, ao florescimento de blocos e bandas de matriz africana (Filhos de Gandhy, Ilê Aiyê, Olodum, Malê de Balê, Muzenza, etc.), somado à ascensão de novos magnatas da nossa indústria do entretenimento, tendo como precursor o administrador de empresas e produtor musical Wesley Rangel. Fazendo jus às iniciais de seu nome - WR -, que batizam seu lendário estúdio, o maior e mais equipado do Norte/Nordeste, Rangel e equipe obtiveram papel crucial no impulsionamento fonográfico em território baiano, produzindo volumes estratosféricos de álbuns registrados por cantores e grupos locais.
O senso comum e a mídia atribuem a fundação, a paternidade e o pioneirismo do movimento conhecido contemporaneamente por axé music ou, abreviado, axé, ao cantor, compositor e multi-instrumentista Luiz Caldas, entretanto a gestação do esquema efetuou-se na década de 1970, quando lançaram seus pilares: as principais agremiações influenciadas pela sonoridade procedente das terras africanas. Tomamos como exemplos o Ilê Aiyê, inventado no Curuzu, Liberdade, em 1974; o Olodum, no Maciel-Pelourinho, em 1979; e o Malê de Balê, estabelecido por pescadores de Itapuã, em 1979. Um conjunto surgiu, na porção introdutória da temporalidade subsequente, misturando rock, forró e galope: o Chiclete com Banana, genuíno pontapé inicial para a escalada multiplicativa que conhecemos atual e habitualmente por axé.
Jovem, talentoso, eclético e versátil, o feirense Luiz Caldas, à frente do grupo Acordes Verdes, formado pelos próprios músicos do WR no primeiro quartel dos anos 1980, aperfeiçoou o estilo, com o jovial acréscimo do afoxé e de ritmos caribenhos à textura estética preestabelecida pelo Chiclete. O LP de estreia do músico, Magia, de fins de 1985, abriu as portas do inédito fenômeno tropical da Bahia ao mercado brasileiro via Fricote, ou Nega do cabelo duro, composição dele e de Paulinho Camafeu, canção que, apesar de polêmica, tornou-se um verdadeiro emblema. Seguindo o rastro do mestre Luiz, veio, a reboque, um comboio astral: Sarajane, Gerônimo, Banda Reflexu's, Cheiro de Amor, Ricardo Chaves, Margareth Menezes, Asa de Águia, Banda Beijo...
Dentro desse explícito modus operandi efervescente, o axé music - termo pejorativo cunhado em 1987 pelo jornalista roqueiro baiano Hagamenon Brito em alusão à irresistível manifestação rítmica nativa - ultrapassou divisas e fronteiras a partir da disseminação de micaretas de norte a sul do Brasil e megaespetáculos no país e no exterior. Acabou, portanto, sendo um movimento tipo exportação, contornando seu matiz e seu apelo estritamente comerciais. Obedecendo a esses signos, Salvador passou de fato por uma invasão inter-regional e alienígena nos circuitos do nosso Carnaval, intercâmbio de culturas, sons, tons, tonalidades, batuques, vertentes, timbres e tribos.
Sabemos, a priori, que os audaciosos magos do nosso show business colaboraram na expansão mercadológica carnavalesco-axezeira, mas eles tiveram o respaldo e o estímulo de conglomerados midiáticos locais e nacionais para divulgar o gênero híbrido de samba, rock, pop, reggae, afoxé e percussivo. Impulsionados por tal respaldo, uma safra genial de astros eclodiu nos decênios seguintes, em progressão geométrica, porém alguns deles não alcançaram êxito e mérito semelhantes. Os expoentes que se consagraram nessas fases foram Daniela Mercury, Carlinhos Brown, Ivete Sangalo, Saulo Fernandes, Cláudia Leitte, Alinne Rosa, Adelmo Casé, Tomate e companhia ilimitada.
Invenção do designer gráfico Pedrinho da Rocha, famoso por conceber capas de discos gravados por cantores e bandas da Bahia, datada de 1993, com o axé já ecoando em profusão onipresente em todos os âmbitos, o abadá entrou em cena, substituindo a obsoleta mortalha, como vestuário exclusivo dos foliões. A multicolorida indumentária, de uso obrigatório para quem sai em blocos, geralmente a coletividade juvenil, é espécie de passaporte do entusiasmo nos seis dias da folia soteropolitana. O boom do abadá ganhou potencial absoluto quando surgiram lojas especializadas - as renomadíssimas são a Central do Carnaval, chefiada pelo inteligente ex-professor Joaquim Nery Filho, fundador do Camaleão; a Axé Mix, controlada pelo grupo Caco de Telha; e o Reino da Folia, comandado pelo Asa de Águia, em referência a seu líder, Durval Lelys, o "Durvalino Meu Rei".
Unidas, as três gigantes detêm o oligopólio mercantil de artefatos carnavalescos de Salvador, cujo propósito é vender dias festivos em formato de abadá, simbolizando um rico sortimento de agremiações, guiadas por um único ou vários artistas, no mínimo dois ou três. Vemos, aliás, que o divertimento sublime do nosso calendário de festas populares apresenta natureza meramente comercial, turística e ainda publicitária, com a estratégia corporativa de fazer com que os Midas axezeiros lucrem bastante, em contínuo detrimento das massas, e de atrair viajantes oriundos de cidades, estados e nações diversificados, deslumbrados pela beleza e pelo clima da Boa Terra. A finalidade do Carnaval soteropolitano é a incrementação e o sacramento de seu aparato mercadológico elitizado.
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