Um herói das negociações

Manifestamos generosos pesares e condolências pelo triste falecimento de um dos gloriosos esboçadores e estrategistas do poder que o Brasil já teve no período pós-1985. Preponderante empreendedor do segmento têxtil que aportou em uma enriquecida multiplicidade de influentes políticos nacionais por vocação, José Alencar Gomes da Silva teve sua habilidade fisiológica decomposta na tarde de ontem. Seu espírito lúcido, ousado e visionário, todavia, perdura para a eternidade na nossa memória individual e coletiva.

Três meses de choque, tensão e dor foram suficientes para que nosso povo, angustiado e apreensivo, acompanhasse na maior parcela dos dias o débil estado de saúde do ex-vice-presidente do pioneiro mandatário vindo das castas inferiores. Assim como a morte de outro eminente mineiro, Tancredo Neves, martirizado como o conciliador para o retorno da democracia brasileira, há quase 26 anos, a perda de um outro brando negociador nem foi tão frustrante para nós. Isso em decorrência de que Tancredo morreu antes de chegar ao Planalto, e José Alencar partiu-se após preencher seu mandato como reserva de Luiz Inácio Lula da Silva.

Falecido na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um conceituado hospital privado da capital paulista, o Sírio-Libanês, Alencar persistiu, ininterrupta, aguerrida e bravamente, até o último minuto de sua grandiosa jornada, uma árdua batalha contra um câncer no sistema digestório. O preocupante tumor intestinal, diagnosticado no organismo de Alencar em 1997, agravou-se progressivamente, fazendo com que suas funções paralisassem em definitivo em razão de falência de múltiplos órgãos, conforme boletim divulgado pelo hospital, onde estava internado desde dezembro do ano passado.

O estado de Minas Gerais, que o acolheu e o consolou, perdeu não somente uma das suas insignes criaturas e um de seus virtuosos heróis, mas também um ente cujo ofício, bem como seus conterrâneos do calibre de Tancredo e Juscelino Kubitschek, era a incumbência na estratégia de costurar alianças. As heroicas articulações entre membros das duas forças classistas em conflito - o capital, do qual Alencar foi o representante-mor, e a classe operária -, tiveram status e papel precípuos nas vitórias de Lula e da nossa atual mandatária Dilma Rousseff.

Um modesto menino, originário de um minúsculo distrito da Zona da Mata mineira, transformou-se, nos decênios seguintes, em um dos industriais de máximo alcance nacional e internacional. Montou embrionariamente, com virtude e ousadia, o que viria a ser o maior império da tecelagem da América Latina. Fundou, em 1967, na cidade de Montes Claros, a Companhia de Tecidos Norte de Minas (Coteminas). Atualmente, o grupo mantém onze unidades fabris no Brasil, uma na Argentina, uma no México e duas nos Estados Unidos, empregando milhares de funcionários nesses países.

Alencar, cujas disposições vitais e salutares cessaram aos 79 anos - faria 80 em outubro -, teve sua saga política intrínseca ao seu dom empreendedor. Já dirigindo uma constelação de associações e confederações empresariais desde os áureos anos 1950, ingressou no poder, entretanto não candidatando-se a cargos eletivos. Solidarizou-se nas campanhas presidenciais de Getúlio Vargas (para seu segundo governo), em 1950, e JK, em 1955, eleitos em ambas as oportunidades, e também de Henrique Teixeira Lott (ex-ministro da Guerra de JK), derrotado por Jânio Quadros em 1960.

Tendo sua frustrada estreia em disputas eleitorais em 1994, ao ser derrotado para o governo do seu estado, conseguiu eleger-se senador quatro anos depois. Valendo-se dessa façanha, argolada com outros requisitos políticos, econômicos e financeiros, fez aproximar-se de Lula  durante testemunhos em algumas fábricas da Coteminas para, em seguida, sair-se candidato a vice-presidente em sua chapa. Por causa desse fato, consideramos José Alencar o articulador-mor para conter a dicotomia burguesia-proletariado e os excessos de radicalismo do ex-comandante do novo sindicalismo, que alvoreceu no ABC paulista, notadamente em São Bernardo do Campo.

O então senador percorreu, custodiado por Lula, em inúmeras localidades, uma espécie de raio-X do país objetivando mapeá-lo através de caravanas, carreatas, comícios e showmícios (hoje oficialmente interditados pela legislação eleitoral vigente), financiados pelo próprio político. A partir dessa quilométrica e notória atividade missionária, em 2002, passamos a ganhar, para o sumo posto brasileiro, um egresso do movimento sindical, ineditismo até então não solidificado. A eminência magna do Partido dos Trabalhadores, tendo o industrial, que assim como o ex-torneiro mecânico não frequentou nenhum curso superior, como suporte, consagrou com esplendor sua coalizão, brotada por diálogos e conciliações.

A personalidade que alicerçou a multiforme e coesa base de apoio da administração federal ocupou cumulativamente as funções de ministro da Defesa. Colaborou decisivamente, sob o seu beneplácito, na formação de uma nova legenda, o Partido Republicano Brasileiro (PRB), com o auxílio luxuoso da Igreja Universal do Reino de Deus, na qual um expressivo contingente de fiéis aderiram à sigla. Logo foi selecionado, em tom de heroísmo, presidente de honra do PRB, um dos partidos coligados à atual gestão nacional, introduzida em 2003.

Reeleitos três anos mais tarde, Lula e Alencar, parceiros na luta por um Brasil mais decente, deram continuidade às prodigiosas realizações que adquiriram mérito, desenvolvimento e inclusão socioeconômica ao nosso país de dimensões continentais imensas. O então vice interviu deliberadamente na cadeira do titular, posta de fato e de direito no Planalto, em eventualidades extraordinárias, quando este viajou ao exterior ou passou temporadas em hospitais e clínicas a fim de melhorar suas condições de saúde. Contabilizaram-se, obviamente, 503 interinidades como presidente em exercício durante os 8 anos de governo Lula.

Como todos os habitantes da quinta maior nação em extensão territorial do planeta, estamos consternados e abatidos por perdermos um mito batizado José Alencar. Um rapaz simplicíssimo do chão interiorano de Minas, embora não estivesse graduado em nível acadêmico, aprendeu por si mesmo a forjar seu longevo e honorável currículo. Coincidência ou não, Alencar trilhou a mesma estrada que Lula, porém em caminhos adversos. Ele morreu trazendo no seu íntimo a mesma honra, o mesmo prestígio, a mesma estirpe e a mesma aura dos demais heróis compatriotas.

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