Veja versus Cazuza

Capa da bombástica edição 1.077 da revista Veja, de 26 de abril de 1989, cuja reportagem admitiu publicamente que Cazuza era soropositivo
(Foto de capa: Sérgio Zalis/ZNZ)

Hugo Gonçalves, Jessica Sandes, Laila Cristina e Lindiwe Aguiar
Estudantes de Jornalismo do Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge)

Artigo acadêmico orientado pelo professor Bernardo Carvalho, docente da disciplina Ética

Resumo

Este artigo explicita, em linhas gerais, o confronto gerado pela revista Veja contra Cazuza, um dos mais populares cantores e compositores de rock do Brasil, já padecendo dos sintomas da Aids, logo após a publicação, na edição de número 1.077, de 26 de abril de 1989, da polêmica reportagem A luta em público contra a Aids, sob o ponto de vista ético.

Palavras-chave: Veja, Cazuza, Aids.

1. Introdução

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, enfermidade mais conhecida por sua sigla Aids (de Acquired Immunodeficiency Syndrome, sua nomenclatura original inglesa), tinha, como primeiras vítimas, homossexuais ou bissexuais masculinos, usuários de hemoderivados e de drogas injetáveis, sendo apelidada, em seus primeiros anos, de “câncer gay”. No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde citados pela jornalista pernambucana Tatiana Notaro, a epidemia contabilizou 474.273 ocorrências entre 1980 e junho de 2007.

Em julho de 1985, quando o repertório para o quarto disco do Barão Vermelho, banda carioca de rock na qual Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, era o líder, vocalista e letrista, já estava selecionado, veio aos jornais de todo o Brasil notícias sobre sua saída do grupo. No entanto, outros integrantes – Roberto Frejat (guitarra), Dé Palmeira (baixo), Maurício Barros (teclados) e Guto Goffi (bateria) – permaneciam. Com a saída de seu líder, seu vocalista e sua estrela maior rumo à carreira solo, Frejat assumiu o vocal.
De acordo com relatos registrados no livro Cazuza: Só as mães são felizes, de Lucinha Araújo, o cantor suspeitava que houvesse contraído o vírus da Aids em 1985. No dia 31 de julho daquele ano, Cazuza foi internado (num hospital do Rio com 42 graus de febre) e o primeiro diagnóstico revelou uma infecção bacteriana e "negativo" para a contaminação pelo HIV. Mesmo assim, a própria Veja levantou especulações: "Depois de sua foto publicada na revista Veja e mesmo negando a doença, as especulações sobre o verdadeiro estado de saúde de Cazuza se intensificaram" (ARAÚJO, 2004, p. 195 apud NOTARO, 2010, p. 4)
Naquela época, os exames hospitalares não eram muito precisos como são atualmente. Cazuza descobriu que era soropositivo – portador do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), causador da Aids – em 1987, aos 29 anos, às vésperas da estreia da turnê nacional de seu segundo disco da carreira solo, Só se for a dois. Ainda vivo, enfrentou os obstáculos ocasionados pela doença infectocontagiosa por intermédio de composições depressivas e tediosas, interpretadas corajosamente por seu autor.

Em outubro de 1987, após ser submetido a uma internação na Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro, Cazuza foi levado pelos pais, Lucinha e João Araújo, para Boston, nos Estados Unidos, onde permaneceu até dezembro. “Lá, passou quase dois meses críticos, submetendo-se a um tratamento com AZT. Ao voltar de Boston, gravou Ideologia no início de 1988, um ano marcado pela estabilização de seu estado de saúde e pela sua definitiva consagração artística. O disco vendeu meio milhão de cópias.” [CAZUZA (site oficial)]. A contracapa de Ideologia mostra a fotografia do cantor mais magro, abatido pelos efeitos da doença, com um lenço repleto de figuras disfarçando a ausência capilar em função do uso de medicamentos. No conteúdo do álbum, a maioria de suas canções expressou o processo de maturidade.

Um lúcido exemplo está em uma delas, Boas novas, cujo refrão diz “Senhoras e senhores/ Trago boas novas/ Eu vi a cara da morte/ E ela estava viva”. A letra, de cunho autobiográfico, era um prognóstico alarmante de que Cazuza estava se definhando até ele morrer.

"Foi pouco depois do lançamento do álbum (seguinte, o ao vivo O tempo não para, no primeiro semestre de 1989), que ele reconheceu publicamente que estava com Aids, sendo a primeira personalidade brasileira a fazê-lo” [CAZUZA (site oficial)]. Sua afirmação de vida, em decorrência do vírus, era tão ilustre. À medida que suas condições vitais e sanitárias declinavam, Cazuza, ciente de sua efemeridade temporal, continuava trabalhando o suficiente. Entrou, de acordo com o site oficial do artista, “num processo compulsivo de composição”, e gravou, entre fevereiro e junho de 1989, numa cadeira de rodas, o álbum duplo Burguesia.
Para Cazuza, admitir ter Aids pode ter ajudado, mas ele enfrenta uma montanha russa de problemas. "Na última vez que me internei, foi por puro álcool", conta. "Eu, que deveria ter uma vida tranquila, sem beber nem me cansar, passei dois dias numa praia enchendo a cara de cachaça, de caninha 51 mesmo. Me dei mal, fui para a Clínica São Vicente e foi um milagre não ter morrido", lembra. Com acompanhamento psiquiátrico, calmantes e trabalho, Cazuza vem tentando se livrar do alcoolismo e das crises de depressão. Sempre que tem forças, ele vai ao estúdio da (gravadora) Polygram (hoje Universal Music) para, sentado e às vezes deitado, gravar o seu álbum duplo. Alguns amigos do cantor consideram que a gravação desse álbum – que tem a música Burguesia, em que afirma que a elite brasileira não é discreta nem tem charme – está contribuindo muito para manter Cazuza vivo. O problema é que ele já gravou músicas suficientes para encher não dois, mas três LPs. (...) Há um medo cada vez maior na gravadora de que Cazuza passe mal e venha a morrer dentro do estúdio. (ABREU; PORRO in VEJA, 1989, p. 86.)
Nesse período, Cazuza, com uma vida fragilizada, concedeu uma longa entrevista aos repórteres Ângela Abreu e Alessandro Porro, da sucursal de Veja no Rio, que disseminou a extensa, emblemática e polêmica reportagem a ser publicada na revista semanal de informação da Editora Abril em sua edição 1077, de 26 de abril de 1989.

Lançado em agosto, o quinto disco-solo de Cazuza, produzido por ele próprio, foi seu último registro fonográfico em vida. O trabalho seguiu uma concepção dual: no primeiro disco, de embalagem azul, preponderava o rock; no segundo, de capa amarela, a MPB. A faixa-título e de abertura do álbum resultou de uma parceria entre Cazuza, o jornalista e produtor musical Ezequiel Neves – falecido coincidentemente no mesmo dia em que a morte do cantor completou 20 anos, em 7 de julho de 2010 –, seu fiel escudeiro, e por George Israel, saxofonista e multi-instrumentista do grupo Kid Abelha. Com uma letra extensa repudiando o cotidiano e os valores da classe burguesa nacional, Burguesia chegou a ser executada nas estações de rádio, mas o álbum não assegurou êxito de vendas e foi modestamente recebido pelos críticos especializados em música.

Dois meses após o lançamento de Burguesia, em outubro de 1989, Cazuza regressou a Boston, onde encontrava-se internado até março do ano seguinte. Seu estado de saúde, segundo o site do cantor, “já era muito delicado”, portanto Cazuza não resistia aos sintomas da Aids, uma enfermidade explicitamente incurável. Faleceu no Rio de Janeiro, sua cidade natal, no dia 7 de julho de 1990, precocemente, aos 32 anos. A cerimônia fúnebre foi realizada no Cemitério São João Batista, em Botafogo, na zona sul do Rio.

2. Análise ética da reportagem

Na semana correspondente ao dia 26 de abril de 1989, a revista Veja, da Editora Abril, publicava sua edição 1.077, que trazia o cantor e compositor na capa. A legenda dizia: “Cazuza – Uma vítima da Aids agoniza em praça pública”. Ao ler a matéria de capa, batizada A luta em público contra a Aids, Cazuza teve uma parada respiratória, sendo internado na Clínica São Vicente, no Rio. Conforme testemunho de Lucinha Araújo [1997, apud NOTARO (2009)], “Ângela Abreu alegou que, apesar de seu nome assinar a matéria ao lado de Alessandro Porro, ela não era a responsável pelo texto final, e que este sofrera edição na redação, em São Paulo. Na semana seguinte, Ângela pediu demissão à revista.” Segundo o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros de 1987, em seu capítulo 3, artigo 11, “o jornalista é responsável por toda informação que divulga, desde que seu trabalho não tenha sido alterado por terceiros.” (apud NOTARO, 2009, p. 5.)
(...) Há quatro anos, deixou a casa dos pais, Lucinha e João Araújo, diretor da gravadora Som Livre. Desde que soube que estava com Aids, Cazuza teve crises de desespero e quase quebrou toda a mobília por duas vezes: atirou garrafas na janela, chutou cristaleiras e jogou vasos no chão. "Assisti a uma dessas crises, uma cena terrível", lembra uma amiga do cantor. "Ele não estava tão magro como agora, mas nunca foi um gigante, e assumiu a postura de um Rambo enlouquecido, destruindo tudo que via pela frente. A quebradeira durou poucos minutos e depois veio o choro, dele e dos pais abraçados, num monumento vivo de desgraça entre os escombros da casa destruída." Lucinha Araújo, cantora bissexta, é quem cuida das finanças e propriedades do filho, que é dono de um apartamento, um Jeep e uma perua Belina, cobra 6.200 cruzados novos por show e vive de direitos autorais. "Não sei quanto tenho, mas sei que sou perdulário, que gasto tudo que posso e minha mãe toma conta de meu dinheiro", diz Cazuza. (ABREU; PORRO in VEJA, 1989, pp. 80-81)
Para assegurar que Cazuza estava de fato morrendo, os jornalistas deveriam utilizar-se de fontes confiáveis, provenientes de hospitais e/ou clínicas, apesar do débil estado de saúde do cantor, admitindo o artigo 7º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros de 1987. Ele diz que “o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação” (apud NOTARO, 2009, p. 6). No entanto, a publicação semanal, segundo Notaro (2009), “toma para si o discurso médico” e, sem o consentimento dos profissionais que acompanhavam Cazuza durante a internação, redigiu sua sentença de morte. Recordemos que existem casos de aidéticos que tiveram uma longa vida, apesar da doença, como o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que conviveu com a Aids de 1986 a 1997, quando veio a óbito.
 
A reportagem de Veja, por ser considerada sensacionalista por alguns, explora, conforme Notaro (2009, p. 12), “a agonia de Cazuza e utiliza a imagem do cantor para justificar suas posições”. O próprio cantor e compositor, portanto, estava, também de acordo com Notaro (2009, p. 12), publicizando sua agonia, ou seja, tornando-a pública. “(...) a opinião velada e irônica da revista é costurada aos depoimentos de Cazuza, dos seus pais e amigos, em um discurso de agonia firmado pelo rosto do cantor, na capa. Seu suplício, pelo discurso de Veja, era resultado da vida desregrada, à base de bebidas, drogas e promiscuidade.” (Idem, 2009, p. 12.)

A partir de análises levantadas por Notaro (2009, p. 10), a edição 1.079 (17/05/1989) que circulou no estado de Pernambuco trouxe 58 cartas enviadas à redação de Veja, em São Paulo. Destas, apenas 27 apresentam discursos favoráveis à revista, “de leitores que consideram a matéria como uma ‘homenagem’ a Cazuza, ‘séria’, ‘realista’, ‘sensível’, ‘correta’ e ‘neutra’", sob a alegação de que Veja demonstrou a realidade de uma vítima da Aids. O parágrafo abaixo é uma transcrição de uma carta enviada pelo jornalista e então deputado estadual paulista Afanázio Jazadji, repudiando a matéria:
Recebam minha solidariedade pelo “desagravo” que esquisitas figuras promoveram contra a revista VEJA, no Rio de Janeiro, por documentar verdades sobre o irracional, abusado e indecoroso Cazuza. De triste memória, este aidético insultou famílias, ofendeu seguidamente o público em seus shows e até desrespeitou o símbolo máximo da nacionalidade – a nossa bandeira. Que os signatários do desagravo – lido em noite de gala e noticiado pela TV Globo – vão todos para os diabos e, ao ordinário Cazuza, que o inferno o receba, em breve e ardentemente. (JAZADJI in VEJA, 1989, p. 19).
O discurso expresso na carta apresenta um caráter extremamente agressivo. A revista, ao publicar esta manifestação, não apenas desrespeita a prática do jornalismo, como o cantor e àqueles que assinaram o manifesto contra a Veja. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, de 1987, justifica que, em seu artigo 10º, alínea “d”, “o jornalista não pode concordar com a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, políticos, religiosos, raciais, de sexo e de orientação sexual” (apud NOTARO, 2009, p. 11). Da mesma forma, a publicação da carta de Afanázio Jazadji incomoda o artigo 14, alínea “b”, afirmando que o jornalista deve “tratar com respeito a todas as pessoas mencionadas nas informações que divulgar” (apud idem, p. 11).

Na amostragem publicada por Veja em sua edição 1.079, que circulou em Pernambuco, parte dos leitores daquele estado compreendeu a matéria como sendo uma homenagem a Cazuza. Segundo Notaro (2009, p. 11), muitos não consideraram sensacionalista sua abordagem, mas esclarecedora sob o ponto de vista da doença e audaciosa ao desmistificar a atuação do vírus HIV em seres humanos. Houve também posicionamentos contraditórios em relação à carta de repúdio lançada por artistas no dia da entrega do II Prêmio Sharp da Música Brasileira, em 25 de abril de 1989. Na cerimônia, organizada no hotel Copacabana Palace, Cazuza recebeu o troféu de melhor disco na categoria pop-rock por Ideologia.

Outros leitores, em conformidade com a pesquisa da jornalista pernambucana, acusaram a maior revista semanal brasileira de informação de falta de respeito com Cazuza, “por ter explorado sua doença com sensacionalismo”. Das 27 cartas, uma chama atenção ao drama do ator Lauro Corona, galã dos anos 80, que viria a falecer em julho de 1989 e foi citado pelo cantor na matéria.
Ninguém tem padecido mais com esses boatos do que o ator Lauro Corona. Abatido, magro, pálido e com o cabelo mais ralo, ele se afastou da novela Vida nova (exibida pela TV Globo entre 1988 e 1989, no horário das seis) em meio a um intenso burburinho: tinha dificuldade em decorar os textos e se cansava facilmente. Lauro explicou que o seu papel exigia que ele trabalhasse ao lado de um forno de padaria num estúdio, o que lhe provocou problemas pulmonares. "Eu não estou com Aids, mas a campanha que a imprensa está fazendo contra mim é tão grande que eu passei a ser encarado como um maldito", disse o ator a VEJA há pouco mais de um mês, quando a onda de boatos chegou ao ápice. "É uma irresponsabilidade a imprensa noticiar especulações, provocando repercussões definitivas em minha vida profissional e afetiva", afirmou Lauro, que desde então vem se recusando a falar com jornalistas. (ABREU; PORRO in VEJA, 1989, p.86.)
E o argumento do leitor, alegando que “faltou respeito à pessoa do ator e ao seu direito de silenciar sobre seu estado de saúde”, tem respaldo no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, de 1987, que define em seu artigo 9º, alínea “g”, que é obrigatório, para o profissional, “respeitar o direito à privacidade do cidadão”. Pelos fragmentos de cartas de leitores adversários do conteúdo levantado pela revista Veja na matéria A luta em público contra a Aids, Notaro (2009) concluiu que ela é tratada como “informativo de imprensa marrom”, “injusta”, “grosseira”, “utilização oportunista (...) sem o mínimo de respeito humano”, “sensacionalista”, “apelativa”, “grotesca” e “sarcástica”.

Referências

ABREU, Ângela; PORRO, Alessandro. A luta em público contra a Aids. VEJA, ano 22, nº 1.077. São Paulo: Abril, 26 abr. 1989. Disponível em: http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_26041989.shtml e http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acessos, respectivamente, em: 28 out. 2010 e 4 nov. 2010.

CAZUZA (site oficial). http://www.cazuza.com.br/sec_biografia.php?language=pt_BR&page=4, http://www.cazuza.com.br/sec_biografia.php?language=pt_BR&page=5, http://www.cazuza.com.br/sec_biografia.php?language=pt_BR&page=6. Acesso em: 4 nov. 2010.

JAZADJI, Afanázio. Cartas. VEJA, ano 22, nº 1.078. São Paulo: Abril, 10 mai. 1989.

MILLARCH, Aramis. A noite de Cazuza na dignidade da coragem. O Estado do Paraná, Curitiba, 28 abr. 1989. Disponível em: http://www.millarch.org/artigo/noite-de-cazuza-na-dignidade-da-coragem. Acesso em: 4 nov. 2010.

NOTARO, Tatiana. Cazuza: O caso da Veja 1.077 – Análise ética do discurso da revista Veja sobre a doença e morte de Agenor de Miranda Araújo Neto. Recife: Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), 2009.

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