O Cab e suas plasticidades

De cima para baixo: painel Primeiro Governador da Bahia (1973-1974), de Carybé, em concreto, na fachada da Assembleia Legislativa; painel A Procissão do Bom Jesus dos Navegantes (1974, reconstituído entre 1993-1994), de Carlos Bastos, no plenário da Casa; sequência de três painéis de Carybé (1974), em madeira, na recepção da Secretaria da Fazenda; detalhe de um dos painéis de Juarez Paraíso (1974) na fachada da Secretaria da Agricultura; monumento a Ayrton Senna (2010), de Bel Borba.
(Fotos: Hugo Gonçalves)

Não são apenas os perfeitos vigores da arquitetura e da política que ecoam altivamente na vastíssima superfície do Centro Administrativo da Bahia (Cab), aglomerado de dezenas de construções governamentais erguidas à base da onipresente tríade aço/vidro/concreto às margens de um dos eixos responsáveis pela radical metamorfose urbanística soteropolitana. Grandes mestres das artes plásticas ultramodernas no nosso estado imprimiram profundas, vivazes, finas, arrojadas e indeléveis reminiscências do imaginário e do místico baiano, dando uma invejável musculatura em alguns prédios públicos ali instalados há mais de três décadas. A concomitância equânime e mútua entre as belas artes (o concreto) e o poder (o abstrato), que utopicamente emana do próprio povo, permeia e está inserida numa ousada conjuntura simbólica.

Observando os edifícios do Cab, a ostensiva presença de monumentais painéis e murais confeccionados com primor impetuoso em tintas sobre tela, em madeira talhada e em concreto, e assinados por notáveis artistas plásticos baianos, como Carlos Bastos (1925-2004) e Juarez Paraíso, e aqueles que se ambientaram na Bahia a posteriori, como o argentino naturalizado brasileiro Carybé (1911-1997), norteia o espectro artístico sistematizado no local. A beleza e o capricho dos painéis materializados por eles servem de mérito à perpetuação de seus gloriosos e irresistíveis trabalhos, reconhecidos dentro e fora do nosso território. São, via de regra, ricas formosuras multifacetadas e buriladas com precisão, diversificando desde mosaicos em altos e baixos relevos até pinturas idealizadas em tintas de tonalidades radiantes, cintilantes e vivificantes.

A sede da Assembleia Legislativa, formidavelmente conhecida pelo epíteto de Casa do Povo, colosso piramidal de concreto armado aparente e um dos prédios mais funcionais do conjunto, exibe, na porção central da sua fachada, um outro gigante. Trata-se do sólido painel trapezoidal assinado por Carybé, intitulado Primeiro Governador da Bahia. Executado entre 1973 e 1974, ano da inauguração do prédio, o mural, também em concreto armado, é abundante em informações visuais, retratando em altos e baixos relevos atributos histórico-culturais do povo baiano. As três matrizes étnicas básicas que o formaram – o índio, o negro africano e o branco europeu (português) –, o sincretismo religioso, combinando o Cristianismo com o Candomblé, as caravelas simbolizando o descobrimento do Brasil, a atividade agropecuária e os homens que a exercem não deveriam abster-se no gigante dentro do gigante.

Tendo o painel Primeiro Governador da Bahia em plano secundário, encontra-se um busto – quase imperceptível para aqueles que veem à distância o gigante de concreto – do ex-deputado estadual e federal Luís Eduardo Magalhães (1955-1998), ex-presidente da Casa no biênio equivalente aos anos de 1983 e 1985. Forjada em bronze pela habilidade manual precisa da escultora Nanci Novais, a minúscula estátua, fixada posteriormente ao falecimento prematuro do ilustre parlamentar e filho de ACM, cujo nome batiza o edifício em formato de pirâmide, é apoiada sobre um suporte circular de fibra de vidro, de tamanho generoso que a peça principal, idêntico a uma pedra comum. Mas o simulacro pétreo da base sustentadora do busto a Luís Eduardo foi obtido através de um genial processo de lapidação da fibra de vidro, um material sintético, tornando-a artificialmente polida.

Também na sede do Poder Legislativo estadual, o plenário é majestosamente ilustrado com uma multicolorida gravura, A Procissão do Bom Jesus dos Navegantes, de Carlos Bastos, no qual também há incrementada abundância de detalhes, propiciando a nítida visibilidade de elementos nela retratados. No painel, personalidades baianas pertinentes aos campos da religião, da música e da política coabitam abstratamente com personagens mitológicos e entes afro-brasileiros, do altíssimo espaço celeste às profundezas aquáticas, em meio a uma Salvador antiquada e mistificada, vista da Baía de Todos-os-Santos. A inclusão, na plasticidade, de Antônio Carlos Magalhães (1927-2007), um dos mais altivos e eloquentes políticos que a Bahia e o Brasil já tiveram, e seu séquito, justifica seu papel de articulador-mor na estratégia da construção identitária estadual na contemporaneidade.

Pincelado originalmente em 1974, o imponente painel de Carlos Bastos foi completamente dizimado pelo drástico incêndio que interferiu no plenário, no arquivo e na biblioteca em 21 de novembro de 1978, por ser confeccionado em placas de fibra de vidro, material passível de combustão. Contudo, Bastos, exímio artífice das telas, o reconstituiu entre 1993 e 1994, a convite do então presidente da Assembleia, Antônio Imbassahy, hoje deputado federal recém-eleito. A segunda versão da ilustração que complementa o plenário da Assembleia, de fato, é uma versão atualizada da primeira, acrescentando atuais figuras, como a cantora e compositora Daniela Mercury, sempre rodeadas pela galeota Gratidão do Povo. A célebre embarcação, datada de 1892, é a encarregada de conduzir, em direção à Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, a imagem do Jesus crucificado na famosa procissão que acontece no dia 1º de janeiro de cada ano.

Carybé, que embora seja argentino de nascença integra o panteão dos retratadores das circunstâncias da baianidade, deixou sua ilustríssima veia pictórica em outra edificação constituinte do Cab, a sede da Secretaria da Fazenda, numa série de três grandiosos painéis nos arredores da recepção. Esculpida com toque de mestre em madeira nobre envernizada, em 1974, mesmo ano da inauguração do prédio, a apreciável sequência, em refinado equilíbrio de altos e baixos relevos, desvenda os aspectos históricos da produtividade econômica baiana, como a agropecuária, a indústria, o comércio e o extrativismo mineral, bem como as especificações da cultura afro-brasileira. Saliento, portanto, que as plasticidades moldadas por Carybé no Cab são supercaprichadas, tendo como uma de suas peculiaridades a lúcida distinção de relevos.

Nas fachadas traseiras da sede da Secretaria da Agricultura, há uma série de três enormes painéis ornamentais excêntricos, porém atraentes, esculpidos livremente por Juarez Paraíso em concreto, também em 1974. Como revestimentos para os desenhos, Paraíso empregou as pastilhas de vidro policromáticas, formando visivelmente uma espécie de labirinto misterioso que traduz as relações harmônicas entre o homem e os recursos da natureza, mais especificamente a terra, objeto exploratório da agricultura. Hoje, a série inventada por Juarez Paraíso, uma lenda ainda viva dos monumentos recobertos de pastilhas de vidro, encontram-se parcialmente maculados pela ação do tempo, desfigurando de leve o seu visual multicolorido, entretanto alguns murais o conservam. O caso mais crítico da série está, claro, no segundo painel, no qual as manchas e a remoção do grosso das pastilhas estão expostas.

Em agosto deste ano, por ocasião da realização da etapa baiana do circuito de automobilismo Stock Car, foi inaugurado, com a presença solene do Excelentíssimo Senhor Governador Jaques Wagner e de uma receptiva legião de pilotos da categoria, o monumento ao memorável piloto brasileiro, tricampeão mundial de Fórmula 1 (1988, 1990 e 1991), Ayrton Senna (1960-1994). A escultura, moldada magistralmente por Bel Borba, um dos nomes mais expressivos das artes visuais nestes últimos tempos, situa-se em frente à Assembleia, em um dos canteiros centrais, ornamentados com vegetação facilmente adequada ao clima. Pintado em contraste de preto e branco, em particular no seu heroico semblante de vencedor, o monumento dedicado a Senna exalta as homenagens póstumas a um dos áureos ases da velocidade que nosso país já teve.

Enfim, os experientes artistas plásticos foram convocados e ao mesmo tempo financiados pelo então governador do estado, Antônio Carlos Magalhães, que, nesta honrosa acepção, era uma espécie de mecenas e patrono da nossa cultura. Os profissionais incumbidos da confecção das belas artes, portanto, tinham a imensidão do amparo financeiro de ACM para custear as vultosas ilustrações representadoras dos elementos da baianidade e, por conseguinte, embelezar e abrilhantar os exteriores e interiores dos edifícios que sistematizam o Cab, dando-lhes uma formosa aparência. Por meio da implantação do centro, conjugada com os sofisticados e ressonantes traçados prediais, brotou um exitoso matrimônio entre a arquitetura e as artes plásticas, pacto profícuo, nas gerações correntes, para o dinamismo urbano de Salvador e de toda a extensão territorial da Bahia.

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