Parte da trajetória de Jaime Sodré é revelada em documentário póstumo

Com direção de Lindiwe Aguiar e disponibilizado na internet, Jaime Sodré, o griô andante resultou de horas de gravações obtidas em diversos momentos da vida desse múltiplo intelectual soteropolitano, falecido em 2020

Hugo Gonçalves, jornalista (SRTE/BA 4507)

Barra do Gil (Vera Cruz), 13 de dezembro de 2022, Dia Nacional da Pessoa com Deficiência Visual, Dia de Santa Luzia e Dia Nacional do Forró

Atualizada em 27 de dezembro de 2022, às 16h02

Para elaborar documentário, diretora acompanhou amigo e estudioso durante sete anos, registrando trechos de palestras, solenidades, exposições, entre outros eventos
Mosaico: Hugo Gonçalves, a partir de reproduções: YouTube/Ogunjá Produções em Vídeo

Diversos registros de uma significativa parte da vida de um exímio estudioso baiano, amigo e entusiasta das manifestações culturais africanas e afro-brasileiras, estão compilados no inédito documentário Jaime Sodré, o griô andante, ao qual é possível assistir na íntegra pelo YouTube. A obra audiovisual, dirigida pela jornalista e videomaker Lindiwe Aguiar, exibe fragmentos imagéticos da gloriosa trajetória do saudoso historiador, professor, mestre, doutor, pesquisador, escritor, compositor e músico Jaime Santana Sodré Pereira, condensados em aproximadamente 25 minutos.

Para produzir essa homenagem póstuma, lançada em março último, Lindiwe – de quem este jornalista foi colega no Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge), onde nos graduamos juntos – teve a fiel incumbência de acompanhar Jaime Sodré, que viria a partir aos 73 anos, em 6 de agosto de 2020, focalizando-o através das câmeras durante horas em palestras, aulas, solenidades, exposições, entre outros eventos, de 2006 a 2013. Esse horizonte temporal resultou em várias gravações de arquivo impregnadas de conhecimentos sólidos, que foram digitalizadas, restauradas e editadas especificamente para esse propósito.

As cenas inaugurais do documentário revelam Sodré adentrando, sob cumprimentos dos presentes, o Plenário Cosme de Farias da Câmara Municipal de Salvador, em dezembro de 2009, com o intuito de ser condecorado com a Medalha Zumbi dos Palmares, concedida a personalidades atuantes em prol do combate ao racismo e à intolerância religiosa. Antes de receber a honraria, proposta pela então vereadora Aladilce Souza (PCdoB), o homenageado, ovacionado pela plateia, proferiu um veemente discurso suplicando respeito urgente em uma sociedade estruturalmente injusta como a nossa.

“Nesse momento que eu sou um dos integrantes do batalhão de Zumbi, eu quero conclamar a todos que a imprensa deve nos tratar com mais respeito (...) a gente é culpado das maldades da cabeça humana. (...) Zumbi mandou dizer: ‘Nos respeite. Nós somos uma religião séria!’ As mulheres negras nesse dia é uma produção que não se acaba mais. (...) Então eu queria cumprimentar a presença feminina, que é um traço da minha personalidade. Já que dizem que em toda cidade todo mundo é d’Oxum e eu também sou”, argumentou Sodré, na tribuna da Casa do Povo soteropolitano.

Em uma palestra do seminário O Samba no Carnaval de Salvador – promovido em agosto de 2013, no Museu Eugênio Teixeira Leal, no Pelourinho –, Jaime Sodré teceu, mediante explanações didáticas, algumas diferenciações entre o samba e o jazz, dois gêneros originários de matriz negra. Segundo o historiador, que também teve um inestimável e consistente auxílio na produção musical baiana e brasileira, o samba tem quase quatro mil anos, enquanto o jazz germinaria séculos mais tarde. Ademais, ele argumentou que o samba não se trata de um produto de caráter meramente rítmico, como também orgânico e espiritual.

E finalizou sua participação no seminário, parafraseando um clássico do mestre Dorival Caymmi (1914-2008), com algumas intervenções do público. “‘O samba da minha terra deixa a gente mole’, mas ‘mole’ de quê?”, questionou, e prosseguiu recitando: “‘Quando se canta todo mundo bole. Quem não gosta de samba, bom sujeito não é (...). E do danado do samba nunca me separei’. Nunca vamos nos separar porque o samba é nosso!”, encerrou, com direito a aplausos da plateia.

Como bom contador de histórias, Sodré publicou o livro infanto-juvenil Uma historinha africana, em 2009, cujo lançamento foi marcado por uma dinâmica jornada de atividades, que inclusive ganharam trechos inseridos no documentário. Para a ocasião, o autor perambulou por escolas na Liberdade, no Curuzu e no Engenho Velho da Federação, tradicionais bairros populosos e majoritariamente negros da nossa cidade. A ideia de escrever uma obra com foco nas crianças, conta o estudioso, veio quando ele trouxe uma pessoa para recitar algumas histórias embasadas na mais autêntica oralidade ancestral, que em terras africanas é conhecida como griô.

“Durante esse tempo eu comecei a observar como o pessoal que está mais ligado à tradição africana tem uma maneira especial de contar histórias. Era assim que minha mãe contava as histórias lá em casa. (...) Griôs são contadores de histórias africanas que têm como função memorizar a história de toda aquela comunidade. Lá não tem uma biblioteca para guardar registros de pessoas, tem a pessoa que sabe de onde você veio, o seu bisavô, seu tataravô. Então, esse é uma figura chamada griô. Tudo veio dessa criatura que eu chamo de enciclopédia”, disse Jaime Sodré, ele próprio o “griô andante”.

Como o próprio nome já sugere, Uma historinha africana – cujo projeto foi contemplado em um edital da Fundação Cultural Palmares – é ambientada no continente de onde nossos antepassados foram expulsos à força, lançando-se à aventura do trabalho escravo no Brasil colonial. E, como recorte desse precioso mosaico geográfico, étnico e cultural para desenvolver com primor o enredo da obra literária, o intelectual escolheu a Nigéria, mais especificamente um de seus estados, chamado Sokoto.

Ao apontar para aquele estado no mapa nigeriano, Jaime Sodré explicou que é um território de fronteira, propiciando interferências evidentes com os países mais próximos. “E vocês podem observar que a Nigéria tem vários pequenos estados, o que significa dizer que um país como a Nigéria não é um povo único. Tem vários povos, várias etnias que habitam essa região, (como) os ibós, os hauçás, os iorubás. Então, quando a gente fala de África, é preciso lembrar que não é uma coisa uniforme. Tem vários tipos de pessoas, às vezes no mesmo território e que têm culturas diferentes, religiões diferentes e hábitos diferentes”, esclareceu o estudioso.

Também convém destacar, em Uma historinha africana, a singular expressão da mulher nigeriana, “considerada uma das mulheres mais bonitas na África” e cujos “traços são muito semelhantes aos da gente aqui”, de acordo com o autor. Além disso, o livro faz menção ao baobá, “a árvore da verdade”, presente em quase todas as regiões do continente. “O baobá é interessante porque vocês podem observar que, na África, considera que ela nasceu de cabeça para baixo. Considera que ela tem a cabeça no solo, dentro do chão, e a raiz é para cima”, explicou Sodré, ao mostrar uma foto dessa extraordinária espécie botânica perante uma turma de alunos da Escola Municipal São Gonçalo, no Engenho Velho da Federação.

O intelectual comentou ainda alguns aspectos visuais da sua obra infanto-juvenil. “E vocês vão ver a voz do ilustrador que vai explicar como é que ele levou em conta para fundir a imagem dos personagens. E a gente traz essas estampas aqui para que vocês possam utilizá-las da seguinte forma, como sugestão”, disse, ainda em sua peregrinação de lançamento do livro, desta vez na Escola Municipal Mãe Hilda – dentro da Senzala do Barro Preto, sede do bloco afro Ilê Aiyê, no Curuzu. Até o fundador-presidente do “mais belo dos belos”, Vovô do Ilê, prestigiou a oportunidade.

Enquanto as filmagens de uma pluralidade de eventos conduzidos pelo “griô andante” são exibidas com certa monotonia, nós, espectadores, clamamos urgentemente por respiro. Assim, o documentário nos teletransporta a um ambiente efervescente de uma nação que deixou um legado na constituição da nossa dimensão sociocultural. Era novembro de 2009, e o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), instalado em um secular imóvel no Centro Antigo da capital baiana, abrigou com pompa a exposição Benin está vivo e ainda lá: ancestralidade e contemporaneidade.

Nas cenas magistralmente registradas por Lindiwe Aguiar, aparece Sodré prestigiando a mostra, sendo rodeado por vários visitantes. “Ah, entendi, a finalidade é outra”, disse o historiador, justificando o motivo de sua ida à exposição. Na ocasião, ele visualizou as obras artísticas aí expostas, com ênfase para as esculturas miniaturizadas de caracteres étnicos do Benin, com indumentárias e adornos típicos do país da costa ocidental da África. Fragmentos imagéticos sonorizados por um tema instrumental, com predominância de elementos percussivos, que se conecta perfeitamente com o berço dos nossos antepassados.

Aproveitando a sua passagem pela exposição, o intelectual declarou, à equipe de reportagem da TV Educativa (TVE), que a aproximação entre a Bahia e a África, em particular com o Benin, se manifesta através de “uma maneira nobre, que é pela arte. Vocês vão ver que as fotografias que estão sendo expostas aqui lembram muito o nosso rosto, os nossos gestos, a nossa maneira de ser. São rostos felizes, embora sofridos, mas que lembram que a Bahia ainda é viva aqui, e está viva na África também.”

E mais: ao ser indagado pelo repórter da emissora pública, Sodré, valendo-se da sua corajosa eloquência, respondeu que o nosso estado recebeu influência notória nos campos da religião, da culinária e, sobretudo, “na maneira de encarar a vida com otimismo e vencendo todas as coisas que fazem com que a gente fique triste” – em síntese, na resiliência. “Nós somos uma sociedade alegre porque viemos da África”, orgulhou-se, confiante.

Retrocedendo para 2007, quando da visita do então ministro da Cultura do Haiti ao Brasil, Daniel Elie, o historiador concedeu-lhe o seguinte depoimento: “(...) Cultuamos divindades aqui do Brasil que nós chamamos de vodunces, e temos semelhanças rituais com o que é praticado lá em vosso país (Haiti). Diálogos com essas divindades são feitos pelos tambores. O que o senhor observou e ouviu são as vozes ancestrais do povo que veio da África para esse Brasil. E nós reinventamos essa forma de cultuar, que é não esquecer as nossas raízes africanas, acrescida de uma dignidade de ser negro. Na verdade, a gente sempre fica muito mais contente quando a gente sabe que nós temos a mesma cara.”

Jaime Sodré, na condição de adepto do candomblé, garantiu assento cativo nos múltiplos eventos inerentes à religiosidade afro-brasileira, os quais sua amiga Lindiwe teve o privilégio de documentar audiovisualmente. Entre eles, pode-se merecer destaque à cerimônia de entrega do Troféu Zeferina, em sua edição 2007, à Ebomi Cidália (1930-2012) – que recebeu do intelectual a alcunha de “Enciclopédia do Candomblé” – e ao seminário em homenagem aos 100 anos do Candomblé de São Gonçalo, no Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em 2010.

No que tange à sua participação no mencionado seminário, Sodré fora incumbido em ministrar uma palestra dedicada à então yalorixá Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018), com quem teve um “profundo amor”. Contudo, as discussões a respeito da história da arte e das religiões africanas nos livros praticamente dominaram a sua preleção. “Todo grande historiador da arte reservava apenas uma página para a arte africana, levando em conta que a África é um continente e não caberia em uma única página. E, por esforço de nós todos, nós conseguimos uma abordagem de arte africana muito mais ampliada, embora não suficiente, mas necessária para compreender a nossa grandeza”, salientou.

Ademais, encontros inesquecíveis não puderam ser ignorados em Jaime Sodré, o griô andante. Em uma dessas reuniões, que celebrou o aniversário simultâneo do homenageado e de Ebomi Cidália na casa da religiosa, em fevereiro de 2011, o intelectual ponderou que “os negros (...) não deviam tocar em cachaça, porque foi a cachaça que trouxe o nosso negro como escravo. Os negros eram trocados por cachaça, olhem que coisa ridícula... Eu não bebo nunca por causa disso. Por causa dos meus ancestrais que vieram”. E Cidália reforçou o argumento do amigo: “A cachaça é ruim.”

Rebobinando mais a fundo, partimos para 2006. A câmera foca em Dona Telinha – com quem Sodré cultivou uma longeva amizade ainda criança, quando ele passou a residir no Engenho Velho da Federação –, festejando os seus 80 anos repletos de vivacidade em um bar da região, o Omolu. Após justificar que iria produzir um documentário sobre a vida da sua amiga, “para deixar para a posteridade”, o historiador a entrevistou em meio a risos, e ela contou as memórias da sua vida social, regadas a cerveja e muita diversão, e Sodré lhe advertiu: “mas tudo dentro da normalidade”.

O bate-papo entre os dois prosseguiu, com o intelectual afirmando que Dona Telinha é “uma figura que representa muito o bairro onde eu moro, que é o Engenho Velho da Federação”. E continuou questionando: “E essa criatura de azul tem alguma coisa a ver com esses 80 (anos)?” A então octogenária, jovialmente, retrucou: “Tenho, tudo a ver.” Prontamente, o historiador encerrou o diálogo que perdurou minutos, expondo as razões para que aquele momento importante da sua amizade com Dona Telinha seja gravado. “A coisa que eu sonhei na minha vida, registrar esse amor que eu tenho por ela, não é uma coisa de hoje; ela sabe disso”, emocionou-se.

Durante as comemorações pelos 463 anos de Salvador, em março de 2012, Jaime Sodré registrou uma mensagem enaltecendo sua paixão incondicional pela quarta cidade mais populosa do Brasil. “Ser de Salvador é ser especial. Ela constrói e construiu a minha personalidade e a personalidade de muita gente. Mas o seu povo tem que ter a responsabilidade de cuidar bem dessa preciosidade, amando mais esta cidade, evitando agredi-la. O bairro da Bahia que é uma verdadeira África é a Federação. Aqui é que eu me realizo como religioso. É aqui que eu me identifico como uma pequena África.”

Nos minutos finais do documentário, é exibida uma miscelânea retrospectiva de excertos de gravações que serviram de lastro para o objeto desta resenha. Como background, uma sofisticada música instrumental africana promovendo um diálogo sonoro entre a tradição ancestral, simbolizada pelos tambores, e a contemporaneidade explícita nos teclados. A última sequência imagética abre com uma cena ampliada do diploma de entrega da Medalha Zumbi dos Palmares, transitando pelas ações que nortearam a divulgação do livro Uma historinha africana e aquele memorável encontro com Dona Telinha.

Volta para a histórica solenidade na Câmara Municipal: o “griô andante” abraça o ilustre empresário Clarindo Silva, de quem foi amigo, e exibe com orgulho o diploma junto à sua mãe, dona Hilda. Encerrando o material audiovisual, Sodré, “dançando” com a Medalha no plenário, a mostra na presença dos seus familiares. Fecha o estojo onde estava guardada a honraria, estende suas mãos e faz um gesto de louvor em reconhecimento por sua sistemática atuação no repúdio às injustiças sociais e raciais, bem como na defesa intransigente de um contingente populacional vulnerável. Um povo que sonha cotidianamente por reparação, inclusão e equidade.


Assista, a seguir, o documentário Jaime Sodré, o griô andante (2022), dirigido por Lindiwe Aguiar.

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