Surdo É Cidadão. Por quê?

Projeto recém-premiado induz os deficientes auditivos à promoção social e ao exercício da cidadania, com a prática em grupos de diversas atividades socioeducativas, culturais e lúdicas
 
Para Márcia Araújo (segurando o troféu), iniciativa transparece não apenas a expressão da língua brasileira de sinais, mas a expressão de sua identidade surda
(Foto: Hugo Gonçalves)
 
Belo exemplo de atitude solidária e transformadora, o projeto Surdo É Cidadão faz com que as ações socioeducativas e vivências diversificadas de cultura e lazer em grupos, como método de promoção social e estímulo ao exercício da cidadania dos deficientes auditivos, se materializem. A iniciativa, criada e conduzida pela psicóloga Márcia Araújo, proporciona momentos de descontração aos usuários surdos e seus familiares, através de reuniões, passeios e atividades recreativas, oportunizando-lhes maior socialização.
 
O programa ainda oferece ao usuário atividades lúdicas gratuitas em espaços públicos de Salvador, como saraus, expressões artísticas, sessões de leitura e de contação de histórias, e facilita ao surdo e a seus familiares o acesso aos bens culturais da cidade. Essas práticas, de acordo com a idealizadora, lhes incentivam a ocupar o tempo livre que dispõem, de maneira a contribuir para o seu bem-estar e a melhoria da qualidade de vida.
 
Márcia, que também é servidora da Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab) e coordenadora do Núcleo de Saúde do Surdo do Centro de Estudos Culturais Linguísticos Surdos (Ceclis), enfatiza que o projeto voluntário, que abrange indivíduos surdos desde a tenra idade até a vida adulta, transparece “não só a expressão da língua brasileira de sinais, mas a expressão de sua identidade surda”.
 
Contemplado recentemente com o 5º Prêmio Servidor Cidadão como quarto colocado, o projeto Surdo É Cidadão desmitifica a ideia de que a língua brasileira de sinais (Libras) une gestos e gesticulações concretas que não expressam conceitos abstratos de pessoas ou instituições que não conhecem pessoas surdas, e ajuda a minimizar sentimentos de exclusão social diante de alguns segmentos que compreendem a Libras como uma língua de fato e de direito.
 
Segundo Márcia, os ouvintes e os deficientes auditivos, embora sejam setores coletivos heterogêneos, são interdependentes. “Tenho a certeza que podemos ser solidários e respeitosos uns com os outros. Nós temos a capacidade emocional de partilharmos nossa sorte, nossa força de lutar pela vida e nossa liberdade”, declarou.
 
Além disso, a iniciativa favorece o fortalecimento mútuo da autoestima da comunidade surda, desenvolve atividades que resgatem valores sociofamiliares, fomenta discussões participativas sobre temas da atualidade, como violência urbana, pedofilia, uso de drogas e nutrição, a partir de palestras ofertadas por instituições das redes pública e privada. “Eu sei que muitos surdos ainda são invisíveis para a sociedade de ouvintes, mas eu também sei que, para todos os ouvintes que estão entendendo, ser surdo é ser também um cidadão”, afirmou Márcia.
 
Márcia Araújo e seu companheiro, professor Milton Bezerra Filho
Trajetória da idealizadora do Surdo É Cidadão caracteriza-se por sua militância pelos direitos dos deficientes
(Foto: Divulgação)
 
Uma audaciosa militante
 
A trajetória desta psicóloga graduada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), no norte do Paraná, é estigmatizada por sua militância na defesa dos direitos da pessoa com deficiência intensificada em sua cidade natal, Goioerê, no centro-oeste daquele estado. Foi lá, no dia 27 de fevereiro de 1991, onde Márcia Regina Bento de Araújo se mobilizou e colaborou na fundação da Associação Goioerense de Deficientes Físicos (Agodef).
 
Seu dinâmico, audacioso e persistente ciclo vital no engajamento da classe deficiente nunca foi passível de estagnação, quando, em março do mesmo ano, Márcia foi convidada para atuar no extinto Centro de Tratamento de Psicoses Infantis (Centrapi), em Salvador, coordenado pela pedagoga Nélia Santos, tendo como orientador o professor-doutor José Raimundo Facion.
 
Na época, ela pediu demissão da entidade educacional onde tinha inaugurado sua carreira, a Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Mesmo contrariando a vontade de seus pais, a futura genitora do projeto Surdo É Cidadão alçou voo e se transferiu para trabalhar na capital baiana, onde fixou residência e continua vivendo até hoje.
 
Márcia estampa em sua alma o orgulho de sua terra e a sua origem humilde. "Meu pai foi um homem exemplar, honesto, trabalhador, um verdadeiro chefe de família. Sua vida foi dedicada aos filhos e à esposa. Ele não bebia, não frequentava restaurantes caros e participava do movimento de encontro de casais todas as semanas. Seu sonho era ver os filhos formados com nível superior”, emocionou-se.
 
A psicóloga recorda de uma lição valiosa que seu pai havia ensinado acerca do respeito ao próximo e da dimensão da importância da solidariedade. “Nunca vou me esquecer de quando ele falou para todos os filhos: ‘A herança que deixo para vocês é o estudo’”. Por isso, o 5º Prêmio Servidor Cidadão com o qual ela foi agraciada, na última terça-feira (22), em solenidade organizada pelo governo do estado no Teatro Castro Alves (TCA), é dedicado à memória de seu pai e à sua amada mãe. “Obrigada por vocês terem dado suas vidas pela educação de seus filhos”, salientou.
 
Em cerimônia no TCA, projeto que favorece aos surdos a inserirem socialmente faturou o quarto lugar do Prêmio Servidor Cidadão 2013
(Foto: Hugo Gonçalves)
 
“Não nascemos para vivermos isolados”
 
De acordo com Márcia Araújo, o prêmio “se apresenta para nos provar que não nascemos para vivermos isolados, para sermos superiores às pessoas com deficiência e ignorar o que está acontecendo com o outro ser humano ao nosso lado”. Além disso, é considerado, sobretudo, um estímulo para que os outros funcionários públicos, provenientes de múltiplas categorias, sejam capturados pelo espírito voluntário de justiça social.
 
"Embora a estrada para chegar até aqui tenha sido difícil, eu não caminhei só. Meu companheiro, o pedagogo Milton Bezerra Filho, os surdos da comunidade surda de Salvador e os amigos e colegas de trabalho sempre estiveram ao meu lado”, disse Márcia. Para a servidora da Sesab, sua indicação para receber o prêmio resultou de uma prática de solidariedade com minorias excluídas socialmente.
 
“Trata-se de respeito ao ser humano que é diferente, trata-se de capacidade de luta de uma comunidade de surdos que enfrenta a exclusão social todos os dias em que acorda no mundo dos ouvintes", afirmou.
 
A estagiária da Superintendência dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (Sudef/SJCDH), Laiza Rebouças, formanda em Direito pela Universidade Católica do Salvador (Ucsal), esclarece que a entrega do troféu ao projeto Surdo É Cidadão “foi a primeira vez que o governo do estado premia um trabalho voltado para a comunidade surda”.
 
"É impossível dizer toda emoção que está dentro do meu coração, o que tenho a dizer será dito com a continuidade do meu trabalho. Para mim, o projeto Surdo É Cidadão já é vencedor por estar entre os 10 finalistas", assegurou Márcia. Como filosofou Vygotsky (1896-1934), notório educador russo do início do século passado, “não é a surdez que define o destino das pessoas, mas o resultado do olhar da sociedade sobre a surdez”.
 
Depoimentos elogiosos sobre o projeto Surdo É Cidadão
 
Márcia Araújo, psicóloga, servidora da Sesab e criadora do projeto: “O projeto trata de uma questão muito séria, ele trata de justiça social. Quando a gente tem um projeto, um trabalho que oportuniza o crescimento do outro, é a capacidade que nós temos, como seres humanos, de se colocar no lugar do outro e permitirá que o outro tenha um direito de cidadania. O projeto Surdo É Cidadão é vida.”
 
Milton Bezerra Filho, professor de Libras e presidente do Ceclis: “Márcia fez o projeto pensando no surdo, na comunidade surda. Como psicóloga voltada para o social, ela melhora a participação dos surdos com suas famílias, inclusive vindo aqui na Biblioteca (Infantil Monteiro Lobato, no bairro de Nazaré) para a prática da língua dos sinais. Tudo isso é muito importante.”
 
Rosane Rubim, diretora da Biblioteca Infantil Monteiro Lobato e parceira do projeto: “O projeto da Márcia é um incentivo à vida. Trabalhar com os surdos, que são tão discriminados pela população, realmente é uma ação que é necessária na nossa cidade.”
 
Vidalgo Guido, presidente do Centro de Surdos da Bahia (Cesba): “Para estimular o surdo, esse trabalho que Márcia está fazendo é muito importante para o social do surdo. É muito importante para os surdos se desenvolverem socialmente.”
 
Nelma de Jesus, beneficiada: “Eu nasci surda, eu tive muitos problemas de comunicação com o mundo ouvinte, porque o mundo ouvinte tem muito preconceito. Eu sou muito feliz, eu sou uma surda feliz.”
 
Janete Neves, mãe de beneficiada: “Sou mãe de Maria Augusta, ela é surda, mas hoje ela está se comunicando bastante com facilidade, com os amigos através do projeto e, hoje em dia, o surdo não tem dificuldade para conviver. É uma vitória para os surdos ter Márcia para nos ajudar.”

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