Surdo É Cidadão. Por quê?
Projeto recém-premiado induz os
deficientes auditivos à promoção social e ao exercício da cidadania, com a
prática em grupos de diversas atividades socioeducativas, culturais e lúdicas
O programa
ainda oferece ao usuário atividades lúdicas gratuitas em espaços públicos de
Salvador, como saraus, expressões artísticas, sessões de leitura e de contação
de histórias, e facilita ao surdo e a seus familiares o acesso aos bens
culturais da cidade. Essas práticas, de acordo com a idealizadora, lhes incentivam a ocupar o tempo livre que
dispõem, de maneira a contribuir para o seu bem-estar e a melhoria da qualidade
de vida.
Márcia, que
também é servidora da Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab) e coordenadora do
Núcleo de Saúde do Surdo do Centro de Estudos Culturais Linguísticos Surdos
(Ceclis), enfatiza que o projeto voluntário, que abrange indivíduos surdos
desde a tenra idade até a vida adulta, transparece “não só a expressão da
língua brasileira de sinais, mas a expressão de sua identidade surda”.
Contemplado
recentemente com o 5º Prêmio Servidor Cidadão como quarto colocado, o projeto
Surdo É Cidadão desmitifica a ideia de que a língua brasileira de sinais
(Libras) une gestos e gesticulações concretas que não expressam conceitos
abstratos de pessoas ou instituições que não conhecem pessoas surdas, e ajuda a
minimizar sentimentos de exclusão social diante de alguns segmentos que
compreendem a Libras como uma língua de fato e de direito.
Segundo
Márcia, os ouvintes e os deficientes auditivos, embora sejam setores coletivos
heterogêneos, são interdependentes. “Tenho a certeza que podemos ser solidários
e respeitosos uns com os outros. Nós temos a capacidade emocional de
partilharmos nossa sorte, nossa força de lutar pela vida e nossa liberdade”,
declarou.
Além disso, a
iniciativa favorece o fortalecimento mútuo da autoestima da comunidade surda,
desenvolve atividades que resgatem valores sociofamiliares, fomenta discussões participativas
sobre temas da atualidade, como violência urbana, pedofilia, uso de drogas e
nutrição, a partir de palestras ofertadas por instituições das redes pública e privada.
“Eu sei que muitos surdos ainda são invisíveis para a sociedade de ouvintes,
mas eu também sei que, para todos os ouvintes que estão entendendo, ser surdo é
ser também um cidadão”, afirmou Márcia.
Márcia Araújo e seu companheiro, professor Milton Bezerra Filho
Trajetória da idealizadora do Surdo É Cidadão
caracteriza-se por sua militância pelos direitos dos deficientes
(Foto:
Divulgação)
Uma audaciosa militante
A trajetória desta psicóloga graduada pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM), no norte do Paraná, é estigmatizada por sua
militância na defesa dos direitos da pessoa com deficiência intensificada em
sua cidade natal, Goioerê, no centro-oeste daquele estado. Foi lá, no dia 27 de
fevereiro de 1991, onde Márcia Regina Bento de Araújo se mobilizou e colaborou na
fundação da Associação Goioerense de Deficientes Físicos (Agodef).
Seu dinâmico, audacioso e persistente ciclo vital no
engajamento da classe deficiente nunca foi passível de estagnação, quando,
em março do mesmo ano, Márcia foi convidada para atuar no extinto Centro de Tratamento
de Psicoses Infantis (Centrapi), em Salvador, coordenado pela pedagoga Nélia
Santos, tendo como orientador o professor-doutor José Raimundo Facion.
Na época, ela pediu demissão da entidade educacional onde
tinha inaugurado sua carreira, a Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais
(Apae). Mesmo contrariando a vontade de seus pais, a futura genitora do projeto
Surdo É Cidadão alçou voo e se transferiu para trabalhar na capital baiana,
onde fixou residência e continua vivendo até hoje.
Márcia estampa em sua alma o orgulho de sua terra e a sua
origem humilde. "Meu
pai foi um homem exemplar, honesto, trabalhador, um verdadeiro chefe de família.
Sua vida foi dedicada aos filhos e à esposa. Ele não bebia, não frequentava
restaurantes caros e participava do movimento de encontro de casais todas as
semanas. Seu sonho era ver os filhos formados com nível superior”, emocionou-se.
A psicóloga recorda de uma lição valiosa que seu pai havia
ensinado acerca do respeito ao próximo e da dimensão da importância da
solidariedade. “Nunca vou me esquecer de quando ele falou para todos os filhos:
‘A herança que deixo para vocês é o estudo’”. Por isso, o 5º Prêmio Servidor
Cidadão com o qual ela foi agraciada, na última terça-feira (22), em solenidade
organizada pelo governo do estado no Teatro Castro Alves (TCA), é dedicado à
memória de seu pai e à sua amada mãe. “Obrigada por vocês terem dado suas vidas
pela educação de seus filhos”, salientou.
Em cerimônia
no TCA, projeto que favorece aos surdos a inserirem socialmente faturou o quarto lugar do Prêmio Servidor Cidadão 2013
(Foto: Hugo Gonçalves)
“Não nascemos para vivermos
isolados”
De acordo com Márcia Araújo, o prêmio “se apresenta para
nos provar que não nascemos para vivermos isolados, para sermos superiores às
pessoas com deficiência e ignorar o que está acontecendo com o outro ser humano
ao nosso lado”. Além disso, é considerado, sobretudo, um estímulo para que os
outros funcionários públicos, provenientes de múltiplas categorias, sejam
capturados pelo espírito voluntário de justiça social.
"Embora a estrada para chegar até aqui tenha sido
difícil, eu não caminhei só. Meu companheiro, o pedagogo Milton Bezerra Filho,
os surdos da comunidade surda de Salvador e os amigos e colegas de trabalho
sempre estiveram ao meu lado”, disse Márcia. Para a servidora da Sesab, sua
indicação para receber o prêmio resultou de uma prática de solidariedade com
minorias excluídas socialmente.
“Trata-se de respeito ao ser humano que é diferente,
trata-se de capacidade de luta de uma comunidade de surdos que enfrenta a
exclusão social todos os dias em que acorda no mundo dos ouvintes",
afirmou.
A estagiária da Superintendência dos Direitos da Pessoa
com Deficiência da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos
(Sudef/SJCDH), Laiza Rebouças, formanda em Direito pela Universidade Católica
do Salvador (Ucsal), esclarece que a entrega do troféu ao projeto Surdo É
Cidadão “foi a primeira vez que o governo do estado premia um trabalho voltado
para a comunidade surda”.
"É impossível dizer toda emoção que está dentro do
meu coração, o que tenho a dizer será dito com a continuidade do meu trabalho. Para
mim, o projeto Surdo É Cidadão já é vencedor por estar entre os 10 finalistas",
assegurou Márcia. Como filosofou Vygotsky (1896-1934), notório educador russo
do início do século passado, “não é a surdez que define o destino das pessoas,
mas o resultado do olhar da sociedade sobre a surdez”.
Depoimentos elogiosos sobre o
projeto Surdo É Cidadão
Márcia
Araújo, psicóloga, servidora da Sesab e criadora do projeto: “O
projeto trata de uma questão muito séria, ele trata de justiça social. Quando a
gente tem um projeto, um trabalho que oportuniza o crescimento do outro, é a
capacidade que nós temos, como seres humanos, de se colocar no lugar do outro e
permitirá que o outro tenha um direito de cidadania. O projeto Surdo É Cidadão
é vida.”
Milton
Bezerra Filho, professor de Libras e presidente do Ceclis: “Márcia
fez o projeto pensando no surdo, na comunidade surda. Como psicóloga voltada
para o social, ela melhora a participação dos surdos com suas famílias,
inclusive vindo aqui na Biblioteca (Infantil
Monteiro Lobato, no bairro de Nazaré) para a prática da língua dos sinais.
Tudo isso é muito importante.”
Rosane
Rubim, diretora da Biblioteca Infantil Monteiro Lobato e parceira do projeto: “O
projeto da Márcia é um incentivo à vida. Trabalhar com os surdos, que são tão
discriminados pela população, realmente é uma ação que é necessária na nossa
cidade.”
Vidalgo
Guido, presidente do Centro de Surdos da Bahia (Cesba): “Para
estimular o surdo, esse trabalho que Márcia está fazendo é muito importante
para o social do surdo. É muito importante para os surdos se desenvolverem
socialmente.”
Nelma de
Jesus, beneficiada: “Eu nasci surda, eu tive muitos problemas de comunicação
com o mundo ouvinte, porque o mundo ouvinte tem muito preconceito. Eu sou muito
feliz, eu sou uma surda feliz.”
Janete
Neves, mãe de beneficiada: “Sou mãe de Maria Augusta, ela é surda, mas hoje ela está
se comunicando bastante com facilidade, com os amigos através do projeto e,
hoje em dia, o surdo não tem dificuldade para conviver. É uma vitória para os
surdos ter Márcia para nos ajudar.”
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