O jornalismo literário explorado por Caco Barcellos em "Rota 66"
Danilo Oliveira, Hugo Gonçalves, Sara Cohim, Suiá Silva, Thais Gouveia e Vinícius Gorender
Estudantes de Jornalismo do Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge)
Artigo acadêmico orientado pela professora Nadja Vladi, docente da disciplina Jornalismo, Literatura e Gêneros Opinativos
Palavras-chave: Rota 66, Caco Barcellos, jornalismo literário, jornalismo investigativo.
1. Introdução
O livro-reportagem Rota 66 - A história da polícia que mata, do jornalista gaúcho Caco Barcellos, publicado em 1992 e republicado em 2003, relata não somente a morte de um grupo de jovens de classe média alta por policiais militares na cidade de São Paulo, mas também alguns casos emblemáticos que aconteceram antes e após esse caso.
Artigo acadêmico orientado pela professora Nadja Vladi, docente da disciplina Jornalismo, Literatura e Gêneros Opinativos
Capa da edição da obra, quando do seu relançamento, em 2003 (à esquerda) e seu autor, Caco Barcellos (à direita)
(Fotos: Divulgação)
Resumo
Complemento escrito do seminário apresentado por nossa equipe durante o 6º Semestre de Jornalismo do Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge), este artigo tem como propósitos fundamentais analisar o livro Rota 66, de autoria de Caco Barcellos, referência brasileira em jornalismo investigativo, e dissecá-lo em suas três partes constituintes, bem como relacioná-lo aos princípios do jornalismo literário.
Palavras-chave: Rota 66, Caco Barcellos, jornalismo literário, jornalismo investigativo.
1. Introdução
O livro-reportagem Rota 66 - A história da polícia que mata, do jornalista gaúcho Caco Barcellos, publicado em 1992 e republicado em 2003, relata não somente a morte de um grupo de jovens de classe média alta por policiais militares na cidade de São Paulo, mas também alguns casos emblemáticos que aconteceram antes e após esse caso.
Atrelado a ele, o jornalista faz uma investigação e revela as ações de violência da polícia que mata para depois perguntar. Isso é visível nos números apresentados por ele, principalmente em casos que envolvem jovens inocentes, geralmente pobres, de etnia negra e parda, e sem envolvimento com o crime.
No livro de 352 páginas, resultado de sete anos de rigorosa pesquisa investigativa, o autor tenta mostrar sempre o lado da vítima, mas com o foco nas ações dos policiais. Através de cada caso, ele mostra como é feita a atividade do jornalismo investigativo, desde o planejamento para obter as informações, os cuidados com a fonte, a necessidade de se montar uma equipe de confiança, aos obstáculos encontrados, por exemplo, o perigo de morte.
E, na sua estrutura, a obra, contemplada com o Prêmio Jabuti de 1993 na categoria Reportagem, fragmenta-se em três partes distintas, a saber: Rota 66, Os matadores e Os inocentes.
2. Resumo da obra
2.1. Primeira parte – Rota 66
Dividida em nove capítulos, narra o célebre episódio que batizou o livro analisado neste artigo. Trata-se do assassinato de três jovens pelos policiais das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), unidade de elite da Polícia Militar de São Paulo, ocorrido na madrugada do dia 23 de abril de 1975, no Jardim América, bairro com predominância da classe alta.
Ocorrida na esquina da Rua Argentina com a Rua Alasca, a tragédia tinha como vítimas Francisco Noronha, de 17 anos; Augusto Junqueira, de 19; e o espanhol Carlos Ignacio Rodríguez de Medeiros, o Pancho, de 21. A equipe da Rota, que estava a bordo da viatura, uma Veraneio cinza, de número 66 – daí o nome do caso, Rota 66 –, os matou pela simples suspeita de terem roubado um Fusca azul, conduzido por Noronha, no qual os rapazes estavam.
Uma frase que revela a ação indevida dos policiais, pronunciada pelo delegado do bairro do Jardim América, é “Grasnavam como patos, voavam como patos. Fomos ver, eram perus” (Idem, p. 78).
Devido ao fato de estarem mortos pela Rota, os jovens acabaram sendo imobilizados, a exemplo de Pancho. Barcellos (2010) descreveu, com precisão de detalhes, as circunstâncias de sua morte:
“Um tiro atravessa o braço direito erguido para proteção do rosto. Outro tiro fratura a perna esquerda. (...) Um tiro penetra na sola do pé. O corpo ainda se mexe. Pontaria na nuca, em seguida mais um disparo fatal. Pancho, o forte, não se movimenta mais”. (pp. 63 e 64.)
Nesta parte ele mostra que os policiais foram ao tribunal, mas julgados inocentes. É perceptível como não apenas os militares envolvidos eram atraídos pela tal prática, como são apoiados pelos superiores. Diante dessas atitudes de crueldade o autor relaciona vários outros casos de morte com os mesmos policiais.
2.2. Segunda parte – Os matadores
2.2. Segunda parte – Os matadores
É dividida em sete capítulos, onde o autor apresenta vários casos de morte de inocentes – cidadãos comuns que nunca praticaram nenhum crime – em que a polícia, primeiro, mata para depois averiguar os supostos criminosos. Uma das práticas para os militares saírem ilesos é após o falso confronto com os bandidos levarem as vítimas ao hospital. Mas as vítimas não tinham direito a defesa, eram pegos e sujeitados às ações de crueldade.
Dentre os casos compilados por Caco Barcellos nesta parte estava o de José Mendes de Oliveira, que adotou o nome artístico Roberto Mendes por imitar o cantor e compositor Roberto Carlos na época da Jovem Guarda. Ele era o maior fã do Rei na comunidade da Vila dos Remédios, em Osasco, na Grande São Paulo.
José Mendes foi assassinado pelo soldado Rony Jorge da Silveira Paulo, motorista da Rota 17, após iniciar a perseguição a um carro roubado, ocupado por três homens, meses antes do caso Rota 66.
“(...) Mendes foi correndo pela escuridão da ruazinha de chão batido e de repente foi iluminado pelos faróis da Veraneio cinza, que veio de uma transversal e surgiu em alta velocidade à sua frente. A fuga de Mendes acabou ali com uma rajada de metralhadora.” (Idem, 2010, p. 175.)
2.3. Terceira parte – Os inocentes
Também dividida em sete capítulos, mais casos de assassinatos são expostos, dentre eles o do Pixote, que foi morto sem nenhum tipo de defesa debaixo da cama e encolhido. Nesta parte, o autor mostra como os PMs fazem para incriminar os falsos bandidos. Apresentam provas inexistentes, como colocar drogas e armas no local do crime.
O autor também relata como consegue coletar os dados, pois ele mesmo criou um banco de dados e fez visitas periódicas ao necrotério estudando documentos e confrontando as explicações dos policiais e o próprio laudo médico.
Menino pobre, filho de migrantes paranaenses, Fernando Ramos da Silva, o Pixote, conforme descreveu Barcellos (2010, p. 289) quanto à sua fisionomia e aparência, era “um jovem branco, magro, (com) cabelos crespos, bigode e barba rala.” Foi assassinado seis meses após o linchamento de um de seus irmãos, Paulo, no dia 25 de agosto de 1987, aos 19 anos, em “uma rua de chão batido, esburacada, mal iluminada, quase deserta”. (Idem, 2010, p. 297.)
Caco testemunhou esse episódio quando ele o cobriu para o Jornal Nacional, noticiário noturno da TV Globo, no mesmo dia do ocorrido. Na reportagem, foram filmadas imagens dos ferimentos no peito da vítima, fundamentais para lançar hipóteses sobre a versão oficial do seu tiroteio.
Por fim, o jornalista consegue, juntamente com os companheiros de equipe, em novembro de 1986, filmar, para o JN, ações de policiais em requintes de crueldade com pessoas sem nenhuma prova possível de crime. Diante disso, ele denuncia a ação dos policiais que logo são afastados do serviço, dessa forma sem a possibilidade de matar mais um.
3. Relação da obra com o jornalismo literário
Felipe Pena (s/d) observa o jornalismo literário como uma “estrela de sete pontas”. Para escrever Rota 66, Caco Barcellos se valeu das sete características, que anos mais tarde seriam descritas e enumeradas por Pena:
Primeira “ponta” da “estrela”, potencializar os recursos do jornalismo significa que o autor aplicou as técnicas do jornalismo diário ao literário. Ao ultrapassar os limites dos fatos cotidianos, segunda característica, ele rompeu com a periodicidade e a atualidade, duas características básicas do jornalismo contemporâneo.
Caco ainda proporcionou visões amplas da realidade, contextualizando a informação da forma mais abrangente possível. Em Rota 66, ele detalhou as informações, relacionou-as com outros fatos, comparou-as com diferentes abordagens e localizou-as em um espaço temporal de longa duração. O autor também exercitou a cidadania, ao pensar como o enfoque do tema pode contribuir para a formação do cidadão. Segundo Pena (p. 8), romper com as correntes do lide, estratégia que confere objetividade à imprensa, adquire-lhe subjetividade, aplicando técnicas literárias de construção narrativa.
Um exemplo de subjetividade na obra encontra-se no capítulo 2, Doutor Barriga, onde Barcellos é sujeito e, por isso, conta um episódio de sua infância que envolve a polícia. Ainda menino, no bairro pobre onde morava na periferia de Porto Alegre, onde nasceu, testemunhou a "prisão" e o "espancamento" de muitos amigos e vizinhos, "injustiças da polícia que se repetiriam muitas vezes" (Idem, p. 31). "Injustiças" que a partir de 1970 deixaram de ser praticadas pelos policiais civis e passaram a ser cometidas pelos militares. Mas nessa época, "depois de 73, eu já não sofria como antes. Tornei-me testemunha dos sofrimentos dos outros. Já era repórter" (Idem, p. 31).
Também dividida em sete capítulos, mais casos de assassinatos são expostos, dentre eles o do Pixote, que foi morto sem nenhum tipo de defesa debaixo da cama e encolhido. Nesta parte, o autor mostra como os PMs fazem para incriminar os falsos bandidos. Apresentam provas inexistentes, como colocar drogas e armas no local do crime.
O autor também relata como consegue coletar os dados, pois ele mesmo criou um banco de dados e fez visitas periódicas ao necrotério estudando documentos e confrontando as explicações dos policiais e o próprio laudo médico.
Menino pobre, filho de migrantes paranaenses, Fernando Ramos da Silva, o Pixote, conforme descreveu Barcellos (2010, p. 289) quanto à sua fisionomia e aparência, era “um jovem branco, magro, (com) cabelos crespos, bigode e barba rala.” Foi assassinado seis meses após o linchamento de um de seus irmãos, Paulo, no dia 25 de agosto de 1987, aos 19 anos, em “uma rua de chão batido, esburacada, mal iluminada, quase deserta”. (Idem, 2010, p. 297.)
Caco testemunhou esse episódio quando ele o cobriu para o Jornal Nacional, noticiário noturno da TV Globo, no mesmo dia do ocorrido. Na reportagem, foram filmadas imagens dos ferimentos no peito da vítima, fundamentais para lançar hipóteses sobre a versão oficial do seu tiroteio.
Por fim, o jornalista consegue, juntamente com os companheiros de equipe, em novembro de 1986, filmar, para o JN, ações de policiais em requintes de crueldade com pessoas sem nenhuma prova possível de crime. Diante disso, ele denuncia a ação dos policiais que logo são afastados do serviço, dessa forma sem a possibilidade de matar mais um.
“Logo depois da entrevista percebemos que os dois rapazes continuavam sendo agredidos por um grupo de PMs, junto à entrada da carceragem da delegacia. Discretamente, Renato Rodrigues coloca a câmera embaixo de seu braço esquerdo. (...) Vinte e quatro horas depois da denúncia, por ordem do comandante-geral da Polícia Militar, três dos PMs acusados foram expulsos da corporação. (...)” (Idem, pp. 349-350.)
3. Relação da obra com o jornalismo literário
Felipe Pena (s/d) observa o jornalismo literário como uma “estrela de sete pontas”. Para escrever Rota 66, Caco Barcellos se valeu das sete características, que anos mais tarde seriam descritas e enumeradas por Pena:
“(...) potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper com as correntes burocráticas do lide, evitar os definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos.” (pp. 6-7.)
Primeira “ponta” da “estrela”, potencializar os recursos do jornalismo significa que o autor aplicou as técnicas do jornalismo diário ao literário. Ao ultrapassar os limites dos fatos cotidianos, segunda característica, ele rompeu com a periodicidade e a atualidade, duas características básicas do jornalismo contemporâneo.
Caco ainda proporcionou visões amplas da realidade, contextualizando a informação da forma mais abrangente possível. Em Rota 66, ele detalhou as informações, relacionou-as com outros fatos, comparou-as com diferentes abordagens e localizou-as em um espaço temporal de longa duração. O autor também exercitou a cidadania, ao pensar como o enfoque do tema pode contribuir para a formação do cidadão. Segundo Pena (p. 8), romper com as correntes do lide, estratégia que confere objetividade à imprensa, adquire-lhe subjetividade, aplicando técnicas literárias de construção narrativa.
Um exemplo de subjetividade na obra encontra-se no capítulo 2, Doutor Barriga, onde Barcellos é sujeito e, por isso, conta um episódio de sua infância que envolve a polícia. Ainda menino, no bairro pobre onde morava na periferia de Porto Alegre, onde nasceu, testemunhou a "prisão" e o "espancamento" de muitos amigos e vizinhos, "injustiças da polícia que se repetiriam muitas vezes" (Idem, p. 31). "Injustiças" que a partir de 1970 deixaram de ser praticadas pelos policiais civis e passaram a ser cometidas pelos militares. Mas nessa época, "depois de 73, eu já não sofria como antes. Tornei-me testemunha dos sofrimentos dos outros. Já era repórter" (Idem, p. 31).
Sexta peculiaridade do jornalismo literário, o autor evitou os definidores primários, que são as fontes oficiais (autoridades), portanto entrevistou as fontes anônimas: os cidadãos comuns, como as famílias dos jovens mortos pela polícia. Em relação à sétima e última “ponta”, a perenidade e a profundidade dos relatos, assim como todas as obras embasadas nos preceitos do jornalismo literário, Rota 66 apresenta fatos que não são superficiais nem efêmeros, ou seja, permanecem por gerações, embora eles acontecessem em contextos históricos díspares.
4. Considerações finais
Observamos que, no livro Rota 66, foram compilados vários casos de assassinatos de indivíduos tanto de classe média alta quanto pobres inocentes, ao serem confundidos com criminosos, praticados pela polícia, em especial a Rota.
Quando Caco Barcellos elaborou a obra, ele resolveu, como suporte, criar um Banco de Dados Não Oficiais acerca dos indivíduos mortos durante o patrulhamento da cidade. Ele se valeu de fontes diversas, como observações e entrevistas feitas no pátio do Instituto Médico Legal (IML) e o arquivo do extinto jornal Notícias Populares, cujo conteúdo publicava grande quantidade de fatos policiais.
Em cada episódio, o livro retrata como é realizada a atividade do jornalismo investigativo, e o autor conseguiu identificar 4.200 assassinatos, contabilizados no Banco de Dados.
Referências
BARCELLOS, Caco. Rota 66: a história da polícia que mata, 11ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.
PENA, Felipe. O jornalismo literário como gênero e conceito. Niterói (RJ): Universidade Federal Fluminense (UFF), s/d.
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