Novos ventos sopram a favor da liberdade

Durante a história do Brasil pós-ditadura militar, e também na Bahia, as ideias democráticas se avançaram plenamente. As injustiças sociais, no entanto, ainda perpetuam no país

Em 15 de novembro de 1982, durante os últimos tempos do regime militar, nos quais a democracia foi gradativamente restaurada, foram restabelecidas eleições diretas para governadores. Segundo os estrategistas da ditadura implantada com o golpe militar de 1964, o Partido Democrático Social (PDS), partido que a apoiou, ganharia em todos os estados do Brasil, neutralizando o sucesso eleitoral das oposições. Mas isso, felizmente, não aconteceu. Dos 22 estados em disputa, a oposição venceu em apenas 10, enquanto o PDS fez 12 governadores, inclusive em todos os nove estados do Nordeste.

O PMDB, maior partido de oposição na época, formado por correntes ideológicas heterogêneas, que reuniram desde liberais moderados até comunistas - o PC do B e o PCB ainda eram clandestinos, elegeu os governadores dos estados do Amazonas (Gilberto Mestrinho), Acre (Nabor Júnior), Pará (Jáder Barbalho), Mato Grosso do Sul (Wilson Barbosa Martins), Goiás (Íris Rezende), Minas Gerais (Tancredo Neves), São Paulo (Franco Montoro), Espírito Santo (Gerson Camata) e Paraná (José Richa). O PDT, herdeiro do legítimo trabalhismo varguista, elegeu seu fundador, Leonel Brizola, para o governo do Rio de Janeiro. A vitória oposicionista nesses estados foi atribuída ao fracasso do sistema político-econômico implantado pela ditadura, levando ao crescente caos social e ao endividamento externo.

Maranhão (Luiz Rocha), Piauí (Hugo Napoleão), Ceará (Gonzaga Mota), Rio Grande do Norte (José Agripino), Paraíba (Wilson Braga), Pernambuco (Roberto Magalhães), Alagoas (Divaldo Suruagy), Sergipe (João Alves Filho), Bahia (João Durval), Mato Grosso (Júlio Campos), Santa Catarina (Esperidião Amin) e Rio Grande do Sul (Jair Soares) foram os estados onde o PDS ganhou. Repare que mesmo nesses dois últimos estados, que pertencem à região mais desenvolvida do país, o Centro-Sul, crescentemente oposicionista, o partido do governo conseguiu fazer seus governadores.

No Congresso Nacional, o PDS elegeu, em 1982, 358 deputados e 12 senadores; e as oposições unidas, então representadas pelo PMDB, PT, PDT e PTB, 328 deputados e 10 senadores. A presença da maioria governista na Câmara e no Senado justificava que ela iria eleger, indiretamente, o sucessor do quinto e último presidente militar, general João Batista Figueiredo. Era o Colégio Eleitoral, uma manobra casuística criada pelo próprio regime a fim de favorecê-lo. Apesar de as eleições diretas para governador serem restauradas após 17 anos de jejum, as capitais e demais cidades consideradas como áreas de segurança nacional ainda tiveram seus prefeitos nomeados (biônicos).

Vitória oposicionista chegou à Bahia, mas precisamente em Salvador

Se o PDS elegeu os governadores nordestinos, o PMDB formou maioria nas Câmaras Municipais de todas as capitais da região, com exceção de Aracaju e São Luís, mas não pôde eleger seus prefeitos. Estes, por sua vez, eram nomeados pelos governadores, pertinentes à mesma legenda. Um exemplo mais importante está em Salvador, onde o PMDB elegeu 26 dos 33 vereadores em 1982. Confira, abaixo, a relação em ordem alfabética dos 26 parlamentares de Salvador eleitos pelo PMDB naquele ano, para a legislatura 1983/1988:

1) Agenor Oliveira
2) Amabília Almeida
3) Ana Coelho
4) Antônio Pinto
5) Arnando Lessa: seria reeleito por mais duas vezes, em 1988 e em 1992
6) Aurélio Lisboa
7) Carlos Leôncio
8) Ednaldo Santos
9) Eliana Kertész
10) Emerson Palmeira
11) Fernando Schmidt
12) Ib Mattos
13) Idelfonso Bittencourt
14) Ignácio Gomes
15) Ivan Ramos
16) Jane Vasconcelos*
17) Joaquim Costa
18) Lídice da Mata*: ela mesma, a futura prefeita, que fez de Salvador a "cidade-mãe", realizando várias obras e iniciativas sociais
19) Ney Campello*: ex-secretário de Educação de João Henrique (quando apoiado pela esquerda) e secretário estadual extraordinário para assuntos da Copa 2014
20) Nilton José
21) Paulo Fábio Dantas**: ex-secretário de Educação de Lídice e hoje cientista político
22) Raimundo Jorge
23) Sérgio Olivaes
24) Sérgio Passarinho
25) Virgílio Pacheco
26) Waldemar Oliveira

Após a legalização dos partidos comunistas clandestinos dos quais fizeram parte, em 1985, os vereadores se filiaram:
*ao Partido Comunista do Brasil (PC do B)
**ao Partido Comunista Brasileiro (PCB)

Na relação acima, é possível observar uma bancada oposicionista que formava maioria na Câmara Municipal da capital baiana. Foram eleitas 5 mulheres para a Casa em 1982, todas peemedebistas: Amabília Almeida, Ana Coelho, Jane Vasconcelos, Lídice da Mata e Eliana Kertész, apoiada pelo ex-carlista Mário Kertész (prefeito biônico entre 1979 e 1981), que era a vereadora mais votada da cidade, com mais de 94 votos.

Deputados federais da ala esquerda do PMDB também foram eleitos na Bahia, como Domingos Leonelli, Francisco Pinto, Virgildásio de Senna (que haviam sido cassados e presos pela ditadura) e os comunistas Haroldo Lima e Fernando Sant'Anna. Com isso, o partido conquistou 17 das 45 cadeiras na bancada baiana da Câmara. Na Assembleia Legislativa, o PMDB detinha 23 deputados estaduais.

Naquelas eleições, o PMDB baiano tinha como candidato ao governo do estado o ex-governador (1975-1979) Roberto Santos, egresso do Partido Popular (PP), uma agremiação de duração efêmera formada por moderados do MDB e liberais da Arena, como o próprio Roberto. Ele surgiu como nome de consenso entre as mais diversas correntes agrupadas no seio do PMDB. Para o Senado, o partido lançava Waldir Pires, cuja ideia inicial era concorrer ao governo, mas foi derrotado por Roberto na convenção estadual. Roberto Santos tinha como candidato a vice o economista Rômulo Almeida (1914-1988), da esquerda peemedebista.

A legenda dos militares obteve, na Bahia, 1 milhão de votos à frente sobre a oposição. Ela conquistou a maioria dos prefeitos e vereadores do interior do estado, em cidades como Feira de Santana (José Falcão), Juazeiro (Jorge Khoury) e Barreiras (Baltazarino Andrade), com mandatos entre 1983 e 1988. O PMDB, na época o maior partido de oposição, elegeu prefeitos em poucas cidades, dentre as mais importantes Vitória da Conquista (Pedral Sampaio, cassado pelo golpe de 1964), Ilhéus (Jabes Ribeiro) e Itabuna (Ubaldo Dantas).

Roberto e Waldir foram derrotados, respectivamente, por João Durval (hoje senador pelo PDT) e Luiz Viana Filho, ambos do PDS. O primeiro, na época deputado federal e que havia sido secretário do Saneamento do segundo governo Antônio Carlos Magalhães, entre 1979 e 1982, foi eleito governador graças ao domínio político de ACM, e fora escolhido pelo então governador para substituir o advogado, ex-prefeito de Salvador (1970-1975) e ex-presidente do extinto Banco do Estado da Bahia (Baneb) Clériston Andrade, morto num trágico acidente de helicóptero durante campanha no interior, em 1º. de outubro de 1982. Luiz Viana Filho, eleito senador em 1974, pela Arena, foi reeleito por mais oito anos de mandato, vindo a falecer em junho de 1990.

Das Diretas à morte de Tancredo

O crescimento das oposições no Brasil nas eleições de 1982 abriu caminho para a realização do movimento popular Diretas Já, organizado pelo então pequeno Partido dos Trabalhadores no ano seguinte, que reivindicaria o restabelecimento do voto direto para presidente da República em 1984. O povo brasileiro, de norte a sul, compareceu aos comícios entre os meses de janeiro e abril de 1984 em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Curitiba, Porto Alegre e Recife. Essas manifestações tinham como objetivo apoiar a emenda constitucional proposta pelo então deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT), que previa eleições presidenciais diretas.

Durante a votação da Emenda Dante de Oliveira, em 25 de abril de 1984, houve uma grande expectativa em relação ao renascimento da nossa democracia. Em Brasília, o general Newton Cruz, de linha-dura, assumiu o comando da cidade, prendendo pessoas vestidas de amarelo (cor da campanha). Esse entusiasmo popular acabou sendo frustrado pela maioria dos deputados do PDS, apesar de muitos deles, incluindo todos os oposicionistas presentes, votarem a favor. Mesmo assim, os 20 anos de regime militar estavam chegando ao fim.

Ainda em 1984, o PDS se dividiu, lançando como pré-candidatos o então vice-presidente Aureliano Chaves, o então ministro do Interior Mário Andreazza (apoiado por João Figueiredo) e o então deputado federal Paulo Maluf, ex-prefeito e ex-governador biônico de São Paulo. Aureliano abandonou sua candidatura, ajudando a fundar, junto com José Sarney (ex-presidente do PDS), Marco Maciel, Jorge Bornhausen e outros dissidentes da legenda governista, a Frente Liberal, que daria origem ao PFL, hoje Democratas. No entanto, Andreazza foi derrotado por Maluf na convenção do PDS, em 11 de agosto de 1984.

O então governador de Minas, Tancredo Neves, moderado do PMDB, foi lançado como candidato oposicionista à presidência, em 12 de agosto do mesmo ano. No governo mineiro, assumiu seu vice Hélio Garcia, ex-prefeito de Belo Horizonte nomeado pelo próprio Tancredo. Além do PMDB, ele teve apoio do PDT, do PTB, da Frente Liberal e de outros dissidentes do PDS, como os ligados a ACM. Para a vice-presidência, a Frente Liberal  designou José Sarney, então senador pelo Maranhão, seu estado natal, que no dia seguinte ao lançamento da candidatura de Tancredo filiou-se ao PMDB.

Tancredo recebeu o apoio de quase todos os governadores e da maioria do Colégio Eleitoral, no qual tentaria eleger Maluf, que era o candidato oficial, já com o partido do decadente regime militar rachado. O governo, que passou a ser minoritário na Congresso, apoiou o empresário e político paulista.

Reunidos em Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, 677 dos 686 deputados e senadores elegeram um presidente civil após vinte longos anos de ditadura. Foi eleito o mineiro Tancredo de Almeida Neves, da Aliança Democrática, formada pelo PMDB, pela Frente Liberal e por todos os outros partidos de oposição, exceto o PT, cujos 17 únicos deputados federais se abstiveram do pleito, "denunciando a eleição indireta como um arranjo das elites" (MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao Terceiro Milênio. 2ª. ed. São Paulo: Moderna, 2002, p. 547). Surgiu, então, a Nova República, demonstrando as esperanças de redemocratização para o povo brasileiro.


Após a agonia de Tancredo, a democracia continua

Nem tudo eram flores para o retorno da democracia no país. Um dia antes da sua posse, Tancredo Neves foi internado no Hospital de Base de Brasília com um tumor benigno no intestino. O vice-presidente eleito, José Sarney, assumiu o poder em caráter interino. Após 39 dias de internação hospitalar, nos quais foram feitas sete intervenções cirúrgicas, faleceu no Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas, em São Paulo, em 21 de abril de 1985, dia de Tiradentes, seu conterrâneo e mártir da liberdade em nosso país. A morte de Tancredo foi anunciada pelo então porta-voz da Presidência, Antônio Britto: "Lamento informar que o Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Tancredo de Almeida Neves, faleceu esta noite, no Instituto do Coração, às 10 horas e 23 minutos."

Sarney, que havia sido articulador do regime militar que começou há 21 anos antes, assumiu a Presidência definitivamente. Ele prosseguiu o projeto político de Tancredo, dando continuidade ao processo de redemocratização. Uma das primeiras medidas de Sarney como presidente em caráter definitivo foi a aprovação de uma Emenda Constitucional que aboliu de vez o chamado "lixo autoritário". A emenda restabeleceu o voto direto para a Presidência da República e para as prefeituras das capitais e áreas de segurança nacional, concedeu o direito de voto aos maiores de 16 anos, extinguiu a fidelidade partidária e as sublegendas para prefeito e senador e permitiu a legalização dos partidos comunistas e o surgimento de várias legendas, muitas delas pequenas.

Com a emenda aprovada, foi possível realizar eleições diretas para prefeitos de capitais e áreas de segurança nacional, que anteriormente eram nomeados pelos governadores (os chamados prefeitos biônicos). Em Salvador, onde a oposição, liderada pelo PMDB, era majoritária, com 26 vereadores eleitos três anos antes, foi eleito, com apoio das esquerdas, o ex-carlista e neopeemedebista Mário Kertész, ex-prefeito biônico nomeado por ACM em seu segundo governo. A escolha de Kertész como candidato a prefeito em 1985 surgiu quando ele derrotou, na convenção do partido, o professor e então deputado federal Marcelo Cordeiro, um autêntico do PMDB. Seu vice era o advogado e ex-deputado estadual cassado Marcelo Duarte, também integrante da ala esquerda da agremiação.

Kertész venceu com facilidade em 15 de novembro do mesmo ano, derrotando o ex-prefeito Edvaldo Brito (PTB), hoje vice-prefeito, apoiado pelo então governador João Durval e pelo então prefeito Manoel Castro, último biônico da capital baiana. Assim como todos os prefeitos eleitos em 15 de novembro de 1985, ele foi empossado em 1º. de janeiro de 1986.

Para compor seu secretariado, Mário Kertész nomeou 3 vereadores de seu partido: sua então mulher, Eliana Kertész, que fora a mais votada de Salvador, assumiu a pasta da Educação e Cultura; e os autênticos Fernando Schmidt e Ignácio Gomes (presidente da Câmara no biênio 1983-1984) se tornaram titulares, respectivamente, da Casa Civil e da Administração. Além disso, o comunista Nilton Vasconcelos, hoje secretário estadual do Trabalho, Emprego, Renda e Transporte, outro membro da esquerda, foi indicado secretário de Serviços Públicos.
 
Eleições presidenciais: o povo escolhe seu representante

Enfim, só faltava eleger o presidente da República após 29 longos anos de jejum. O último presidente eleito antes do golpe de 1964 havia sido Jânio Quadros, que governou por apenas sete meses, em 1961. Ele prometia livrar o Brasil dos problemas criados no governo do seu antecessor, Juscelino Kubitschek, principalmente com os gastos que resultaram na construção de Brasília. Os favoritos ao cargo máximo do país, segundo as primeiras pesquisas, foram Leonel Brizola (PDT) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). As crises políticas, econômicas e sociais, que se acumularam durante vinte anos de ditadura, foram agravadas durante o governo Sarney, que não era ideal para o povo brasileiro.

Entrou em cena, então, o ex-prefeito biônico de Maceió, o ex-deputado federal malufista e o ex-governador de Alagoas Fernando Collor de Mello. Filiado a um partido pequeno que ele mesmo fundou, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN), Collor era integralmente apoiado pelas elites e pela grande imprensa, especificamente as Organizações Globo. A mídia trabalhou constantemente, até o final da campanha, a imagem do "caçador de marajás" (perseguidor de funcionários públicos com altos salários), jovem bem-vestido, playboy, piloto e praticante de esportes como cooper e jet-ski. No primeiro turno, ocorrido há 20 anos, em 15 de novembro de 1989, a escolha estava definida entre Collor e Lula, candidatos de posições ideológicas distintas. Brizola ficou em terceiro lugar.

Poucos dias antes do segundo turno, como previsto na Constituição de 1988, a Rede Globo exibiu o último debate eleitoral, favorecendo o candidato que a emissora apoiou. Collor acabou ganhando o debate e, em seguida, o segundo turno, realizado em 17 de dezembro, tornando-se o primeiro presidente brasileiro eleito por voto popular depois de 29 anos. Empossado em 15 de março de 1990, Collor também foi o primeiro presidente a sofrer impeachment na História do Brasil, em 1992, devido a denúncias de corrupção. Em seu lugar, assumiu o vice-presidente Itamar Franco, que havia rompido com seu antecessor.

A democracia é importantíssima para o progresso do povo brasileiro e também do povo baiano. Quase 25 anos após a vitória de Tancredo Neves com o surgimento da Nova República, as desigualdades sociais ainda persistem pelos quatro cantos do país. Muitas pessoas continuam vivendo sem futuro definido, apesar da ressurreição e da efetiva consolidação da liberdade, da democracia e do estado de direito.

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