Em pleno reduto do samba

“Quem não gosta de samba, bom sujeito não é.” A máxima do nosso eterno e imortal mestre Dorival Caymmi (1914-2008), que se estivesse vivo completaria seu centenário, espelha magistral e magnificamente o verdadeiro gênero musical nascido e criado aqui na nossa diversificada Bahia de todos os santos, encantos e mistérios. O samba, de fato e de direito patrimônio imaterial da humanidade, sempre teve genética baiana, por muitas vezes questionável.

Para exaltar um dos ritmos partícipes do óbvio mosaico artístico do nosso amado e aclamado estado, Santo Antônio Além do Carmo, anexo ao Pelourinho, hospedou, neste final de semana, por três animados dias, a edição de estreia do Festival do Samba. Foram momentos gratificantes para que a coletividade, em geral soteropolitana, apreciasse, em comunhão com as edificações coloniais do histórico bairro, a autêntica cadência que emana da sã e salva música de raiz.

O festival, artefato constituinte do calendário de eventos da Prefeitura de Salvador, foi um prelúdio para o Dia Nacional do Samba, reverenciado hoje, com toda a pompa e circunstância. Na minha ótica, ele teve sua criação justificada devido à conservação, à perpetuação e ao enaltecimento da diversidade de culturas, frequentemente ofuscada pela excrescência do pagode e pela ala mercantil do sazonal Carnaval, entre outros fatores ocasionadores da ignorância das artes, bem como a exaltação do próprio gênero.

A municipalidade da primeira capital do Brasil, através de seu dínamo cultural, a Fundação Gregório de Matos, capitaneado pelo inteligente diretor teatral Fernando Guerreiro, vem resgatando, recentemente, fantásticos combustíveis no segmento, com destaque para o retorno do antológico projeto Boca de Brasa (idealizado em 1986 e desativado em 2003), aplaudido pelo nosso povo, vetor transportador de manifestações que exalam música e teatro para bairros populares da cidade, assim como a própria organização do Festival do Samba.

Tendo o notório maestro Letieres Leite, inventor e mentor da big band Orkestra Rumpilezz, como curador, o evento agregou seu alicerce, o samba regional, em sua plenitude, explícita de modo recíproco em matizes que não podemos mensurar, tais como o samba de candomblé, vertente mais arcaica, o samba-chula, o samba urbano, o samba contemporâneo e, como bônus, o samba nacional, centrado no Rio de Janeiro dos morros e da boêmia.

Mesmo harmonizadas pelas veteranas estrelas cariocas Elza Soares, “muito feliz de voltar à Bahia”, e Paulinho da Viola, que teve a honra de encerrar esse esplêndido espetáculo, as seletas atrações genuinamente baianas brilharam com intensidade e nobreza nos palcos sem distinções. Magnitudes como Roque Ferreira, Edil Pacheco, Walmir Lima, Riachão, o santo-amarense Roberto Mendes com seu samba de roda do Recôncavo e, vejam vocês, o lendário grupo É o Tchan fizeram uma admirável plateia lotada no Carmo ganhar luminosidade.

Os artistas, as canções e as cadências do samba, como aqueles apresentados no primeiro festival do gênero de gênese baiana, mera amostra da sua revitalização, independentemente de vertentes, etnias e faixas etárias, são o nosso reflexo identitário. Todos nós, conterrâneos, podemos e devemos preservar com resistência e jogo de cintura o ritmo gestado aqui na terra de Caymmi e de eminentes sambistas, como o saudoso Batatinha, deixando-o como legado contínuo para um povo humilde, inventivo e ousado.

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