Jovem mestre do samba

Biografia do cantor e compositor Noel Rosa é narrada no belo filme Noel - poeta da Vila, ambientado no Rio boêmio dos anos 30

Músicas de Noel Rosa (à esquerda, na pele de Rafael Raposo) foram inspiradas pelas bebidas, pelo cigarro e pelo convívio com mulheres
(Foto: Divulgação)

Um indefectível gênio da boêmia carioca de seu tempo, apesar de demonstrar sérias sequelas anatômicas e sanitárias. Assim era a vida e a arte de um dos criativos compositores que contribuíram para o florescimento da Música Popular Brasileira. Criado na Vila Isabel, o sambista carioca Noel Rosa (1910-1937) vivia às custas do consumo de bebidas alcoólicas e de cigarro e do convívio com as mulheres, fatos inspiradores de suas memoráveis canções. Toda a sua efêmera trajetória, atualmente, encontra-se analisada, sintetizada e sistematizada em uma constelação de obras, como o filme Noel – poeta da Vila, de 2006, dirigido pelo cineasta, artista plástico, fotógrafo e publicitário Ricardo van Steen.

Resultado de doze anos de trabalho e pesquisa árduos, a cinebiografia, com 99 minutos de duração, teve seu embasamento no objeto literário Noel Rosa: uma biografia, escrito pelo jornalista João Máximo e pelo músico e engenheiro Carlos Didier e lançado em 1990. O livro caiu nas mãos de Van Steen através do montador Umberto Martins, seu parceiro nos ofícios cinematográficos. Nessas circunstâncias, há 18 anos, a paixão e o entusiasmo do cineasta pelo filósofo do samba se iniciou. Em 1996, dirigiu um outro filme sobre o compositor, o curta-metragem Com que roupa? (1996), espécie de ensaio para o longa.

A película reproduz com primor a cotidianidade e o cenário artístico do Rio de Janeiro da década de 1930. Teve seu êxito e favoritismo definitivamente confirmados pelas plateias que lotaram o Festival de Cinema da capital fluminense e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ambos realizados em 2006, e a Mostra de Cinema de Tiradentes de 2007. Foi na mostra, estabelecida na cidade histórica de Minas Gerais, onde Noel – poeta da Vila garantiu a contemplação unânime na categoria Melhor Filme, pelo júri popular.

Para interpretar Noel Rosa, foi escolhido um jovem e desconhecido ator, o carioca Rafael Raposo, que precisou aprender canto, violão, dança e sinuca e emagreceu 14 quilos. O filme magistral focaliza a face intimista do franzino boêmio da Vila Isabel que, na sua adolescência, aos 17 anos, tinha espírito cômico e jocoso, e seu maior passatempo era improvisar quadras debochadas para os amigos do bairro da zona norte do Rio. Embora possuindo saúde frágil e debilitada, ele era sobretudo um artista genial. Cursava Medicina e tocava numa banda em companhia de outros rapazes da Vila. De imediato, ele cultivou e suplantou amizades e afinidades com operários, negros e prostitutas.

Em uma das cenas iniciais, na qual revela o súbito encontro amistoso entre o protagonista e o extraordinário sambista Ismael Silva (1905-1978), ele, vivido por Flávio Bauraqui, tenta desafiar Noel ao compor um samba e, de repente, é desmentido. Ao lado do prematuro filósofo do gênero tipicamente nacional, Ismael plantou 18 composições, algumas em parceria com Francisco Alves (1898-1952), o Rei da Voz, materializando a sua constância na veia musical de um de seus importantes parceiros.

Noel – poeta da Vila também explora, com igual mérito, dois aspectos cruciais da brilhante carreira do cantor e compositor, vitimado precocemente pela tuberculose aos 26 anos de idade, em 4 de maio de 1937. Tratam-se do triângulo amoroso entre ele, sua esposa, Lindalra (Lidiane Borges), e a dançarina de cabaré Ceci, recriada pela atriz global Camila Pitanga, maior paixão de sua vida, para quem Noel criou canções como a bonita Último desejo, executada numa cena romântica; e das frequentes hostilidades musicais travadas por Noel e pelo contemporâneo Wilson Batista (1913-1968) através de letras de sambas. Na fita, o sambista, desafeto máximo do rapaz de estatura magra, é reencarnado pelo ator Mário Broder.

O polêmico duelo foi introduzido em 1934, quando, após Wilson forjar o samba Lenço no pescoço, apologia à malandragem, tema recorrente nas letras do gênero, Noel respondeu com Rapaz folgado. As rivalidades presentes entre os dois esplendorosos compositores da época, àquela altura, já eram consistentes e substantivas. Baseando-se em O mocinho da Vila, também de 1934, na qual Wilson, valendo-se da sua atitude pitoresca, repudiou Noel Rosa e o bairro onde ele veio ao mundo, o rival inventou uma de suas célebres canções, Feitiço da Vila, parceria com o pianista e compositor paulista Oswaldo Gogliano (1910-1962), cognominado Vadico.

Então, a hostilidade, que já estava fazendo um sucesso tremendo e retumbante, se transformou em emblema peculiar nas carreiras de Noel e Wilson. Enquanto o último compôs Conversa fiada, em 1935, o primeiro criou, no mesmo ano, outra pérola famosa da sua trajetória, Palpite infeliz, considerado o ponto de culminância das brigas tramadas continuamente pelos dois. Sem nenhuma resposta de Noel, Wilson Batista perseverou o duelo, compondo, no ano subsequente, Frankenstein da Vila, uma descrição da anomalia física do desafeto, e Terra de cego. Com a canção Deixa de ser convencido, letra de Noel feita em cima da melodia de Terra de cego, de Wilson, as brigas entre eles já cessaram.

A cinebiografia do filósofo do samba explora, além da supracitada relação com Ismael Silva, as amizades mais significativas que ele frutificou em seu parco espaço temporal. Noel Rosa construiu convivências férteis com artistas de sua época, a exemplo da cantora Aracy de Almeida (1914-1988), relida no filme por Carol Bezerra, que gravou várias composições de Noel, como Riso de criança e Palpite infeliz, que foi seu maior sucesso; Francisco Alves (Cristiano Gualda); Cartola (1908-1980) (Jonathan Haagensen) e o poeta, ator e compositor Mário Lago (1911-2001), cuja releitura coube ao roqueiro paulista Supla.

Mais do que precioso, Noel – poeta da Vila traz ao espectador um mergulho profundo pela preciosidade musical do sambista tímido e recatado através de suas 30 composições rigorosamente selecionadas para a trilha sonora. Dentre elas está um de seus magníficos e eternos sucessos, o clássico Com que roupa?, com letra autobiográfica e melodia inspirada no Hino Nacional Brasileiro, gravado para o Carnaval de 1931. O espetacular longa, mesmo sendo uma condensação da vida breve e volúvel do irreverente cantor e compositor, traduz a puríssima essência de um dos ases do autêntico samba, que, ao se despedir mais cedo, deixou para a posteridade um acervo de mais de 250 músicas, algumas delas inéditas.

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