Nosso inconfundível tempero baiano

Iguarias típicas, como o acarajé e o abará, são trabalhosamente modeladas por baianas, exóticas comerciantes de tabuleiros, e despertam os sentidos de nativos e turistas pelo seu extraordinário sabor


Tesouros da nossa culinária, o acarajé e o abará passaram a ser vendidos conforme tradições históricas e religiosas
Fotos: Divulgação (1) e Solange Rossini (2)

Em qualquer ponto estratégico da Bahia, não é difícil achar fabulosas figuras femininas, de predominância negra, trajadas de modo análogo às filhas de santo do candomblé e vendendo iguarias típicas em seus tabuleiros. Assim como qualquer comerciante informal, as baianas, como elas são denominadas, lidam bastante com o trabalho pesado, desde a preparação do acarajé, do abará e de outras delícias da Boa Terra até a sua comercialização. Requinte, sofisticação, higiene e força física são indispensáveis na dura rotina das operárias de uma multiplicidade de sabores exóticos.

Feito pelas mãos das quituteiras a partir da massa preparada à base de feijão fradinho, temperada com cebola e sal a gosto e moldada em formato de bolinhos fritos em azeite de dendê quente, o acarajé cativa, além do paladar, a visão e o olfato de nativos e de turistas. Diversas características asseguram-lhe o título de patrimônio imaterial dos baianos e dos brasileiros – “o fazer acarajé, seu receituário, sua tradição religiosa e popular, seus significados históricos, mais a sua antropologia” –, conforme o antropólogo Marlon Marcos, mestre em Estudos Étnicos e Africanos pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (Ceao/Ufba).

Marlon, que também é jornalista e professor, observa que o comércio dos tesouros da culinária baiana em tabuleiros é uma tradição histórica, erguida com as chamadas “escravas do ganho”, que as vendiam para seus senhores. “Também é uma tradição religiosa, na qual as filhas de Oyá-Iansã (orixá dos ventos e das tempestades) iam às ruas vender o ‘acará’, alimento mais que sagrado desta deusa iorubana”, afirma o antropólogo. Segundo Marlon, esse ritual “era uma forma de cumprir mais sacrifícios votivos após a iniciação daquelas que são filhas do fogo, filhas de Oyá”.

Baiana desde criança

Eliene de Jesus Muniz, 36 anos, é apaixonada pela culinária típica desde os 9, quando ajudou sua mãe, dona Ednalva de Jesus Muniz, a mexer na massa, catar camarão e lavar pratos. Ela aprendeu a preparar acarajé na companhia de dona Ednalva e de sua tia, Jaciara de Jesus Santos, a famosa Cira de Itapuã. “Eu comecei a vender acarajé em Itapuã, com 12 anos de idade”, diz Eliene, que nasceu e foi criada no bairro, onde há uma das maiores concentrações de baianas de Salvador. Há quase doze anos, ela fixou sua tenda na Rua das Gaivotas, no Imbuí, ao lado do shopping Gaivota. Sua clientela é heterogênea, formada por estudantes, empresários e comerciantes.

Todos os alimentos comercializados por Eliene, que, segundo a filha Adriele, 15 anos, é “de primeira qualidade”, são feitas pela baiana em sua própria residência, no Jardim Armação. Antes de se transferir para o Imbuí, ela, ao lado de seu indissociável tabuleiro recheado de quitutes, circulou por diferentes pontos. “Trabalhei em praia, em faculdade, na Pituba, por tudo”, lembra. No tabuleiro, Eliene é auxiliada por sua irmã mais velha, Elizângela, e pelas filhas Crislaine, 19 anos, e Adriele.

De domingo a domingo, a rotina de uma das melhores baianas do Imbuí é exaustiva, inclusive nos feriados. Seus clientes são atraídos pelo delicioso tempero dos quitutes, degustando-o e exalando o irresistível aroma de dendê emanado deles. “Têm um bom tratamento, proporcionando um acarajé gostoso”, alegra-se Eliene. Para a quituteira, a venda de iguarias típicas em seu tabuleiro é um negócio lucrativo, gerado pela qualidade dos produtos. O acarajé que ela prepara foi premiado com o certificado da revista Veja, em 2008, como o melhor de Salvador.

Duas tendas para degustar

Numa tenda armada na Praça do Canal do Imbuí, Maria de Lourdes Miranda, 58 anos, mais conhecida como dona Lurdinha, atende os moradores do bairro e proximidades vendendo não somente acarajé e abará, mas também cocadas, passarinha, bolinho de estudante e até doce de tamarindo. Dona Lurdinha, autodidata, se iniciou na preparação e no comércio de quitutes aos 15 anos, no Jardim de Alah, na orla marítima. Mudou-se para o Imbuí em 1982, atendendo no Centro Comercial do Imbuí (CCI), onde está até hoje, mas ela também fixou sua tenda no canal em janeiro, quando todos os comerciantes que ocupavam áreas vizinhas a condomínios foram transferidos para o novo espaço.

“Minha rotina é trabalhar e sustentar minha família no tabuleiro de acarajé”, revela dona Lurdinha, mãe de 3 filhos e avó de 4 netos. A quituteira possui cinco assistentes: duas no canal, uma no CCI e três em sua casa, em Vida Nova, bairro popular de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana, onde são preparadas as iguarias para, em seguida, serem vendidas em seu tabuleiro. Quando Lurdinha está trabalhando no canal, sua tenda pioneira, instalada no CCI, é ocupada pela cunhada Silvana.

Recentemente, o acarajé de dona Lurdinha foi indicado no guia Veja Salvador e no Guia Turismo. “Não tem premiação de acarajé. Só tem indicação”, declara seu marido, o técnico em eletrônica Aristóteles Miranda. Segundo dona Lurdinha, além da culinária, a satisfação dos seus clientes, que emana do prazer em seu atendimento, é um requisito substancial que não deve faltar em seu tabuleiro.

Hora extra

Baiana por vontade, e com uma modesta clientela, “bem pequeninha”, Rosângela Assis da Silva, 49 anos, a dona Rosa, trabalha diariamente num tabuleiro fixado numa pracinha da Rua Abelardo Andrade de Carvalho, no bairro da Boca do Rio, para suprir a hora extra de dona Evandete, amiga e colega de profissão. Dona Rosa, discípula de uma amiga sua, dona Clarice, falecida há cinco anos, veio de família carente, tendo uma infância “triste, pobre e sem dinheiro”. Hoje, sua moradia está dividida entre a Boca do Rio e a cidade de Cruz das Almas, no Recôncavo, onde ela também atua.

Ela vende os tradicionais e autênticos quitutes baianos – acarajé, abará, passarinha, bolinho de estudante, cocada e doce de amendoim – como método de subsistência, sustentando “mais ou menos” os membros de sua família. “Fico sentada, vendendo acarajé”, explica dona Rosa. O seu cotidiano é normal, entretanto complexo, pois ela cata camarões, lava os grãos de feijão fradinho, ingrediente fundamental para o preparo do acarajé e do abará, e transporta todo o arsenal necessário para a montagem do seu tabuleiro. Solteira, mãe de 3 filhos e avó de 4 netos, dona Rosa revela que a sua fé em Deus é imprescindível. “Sou católica em todas as igrejas que eu vou”.

Tanto o acarajé quanto o abará, preparados pelas baianas espalhadas pelo Brasil alterando a maneira de fazê-los e de servi-los, influencia o dia a dia dos baianos saciando a fome de muita gente, segundo Marlon Marcos. “Por serem gostosos e relativamente baratos, funcionam como ‘prato do dia’ para muitos baianos sem condições de fazer uma refeição mais cara. Alegram as ‘entradas’ em bares e restaurantes e sempre acompanham nossas cervejadas ou, até mesmo, nossa Coca-Cola”, pontua o antropólogo.

Ele ainda pondera que as iguarias baianas, bem como qualquer outro alimento típico, traduzem a identidade cultural de um povo. “O acarajé e o abará são cheios de significados culturais para a representação do povo baiano. Além de alimento popular, de servir como sinal diacrítico da Bahia no mundo, possuem, os dois, elementos sagrados por pertencerem à culinária dos orixás”, esclarece. Para Marlon, os quitutes deixaram um legado significativo para a cultura baiana e brasileira, representando a inventividade gastronômica dos civilizadores negros vindos da África, por sua vez, em função do candomblé.

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