Rumos inéditos para a MPB

A valiosa memória das artes brasileiras, em particular a música, deve ser perenizada para que o público em geral tenha o absoluto direito de aprofundá-la, principalmente, por meio de documentários excelentes na qualidade e no conteúdo. Documentários são elaborados e exibidos com a finalidade de os espectadores adquirirem um aprofundamento do tema em evidência. Com mais de um mês em cartaz em poucas salas de projeção de algumas cidades, o exemplar e contagiante documentário Uma noite em 67 desvenda minuciosamente todos os personagens e bastidores do espetáculo classificatório, considerado o divisor de águas da história da Música Popular Brasileira (MPB). Um episódio áureo que revolucionou radicalmente nosso modo de pensar, sentir, fazer e refazer cultura.

Numa noite glorificadora do dia 21 de outubro de 1967, o Teatro Paramount – hoje rebatizado de Teatro Abril após completa restauração –, na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, no centro da turbulenta megalópole paulistana, abriu as portas para receber os doze finalistas do 3º Festival de Música Popular Brasileira, realizado pela TV Record. Dentre eles, apenas cinco jovens talentos faturaram os primeiros lugares – Edu Lobo, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso e Roberto Carlos, àquela altura um dos líderes da Jovem Guarda. Protagonizando a obra cinematográfica dirigida por dois estreantes no cinema – o jornalista Renato Terra e o publicitário e crítico da sétima arte Ricardo Calil –, os vencedores defenderam audazmente, em uma plateia divergida entre aplausos e vaias, suas respectivas canções que logo se tornariam êxitos nacionais.

Quando Renato, um dos diretores do longa-metragem de 105 minutos, estava se formando na faculdade e elaborou sua monografia acerca da Era dos Festivais, em 2003, ele apresentou ao seu orientador a ideia de concretizar o material audiovisual tratando exclusivamente da famosa terceira edição do evento. Já que o projeto não decolou a princípio, por ter pouquíssimas informações coletadas sobre o assunto, Renato convidou Ricardo dois anos depois. A fim de obtê-las com máxima dimensão, eles recorreram a entrevistas. Foi aí que a semente da película, fruto de um trabalho intensivo e exaustivo de cinco anos, começou a brotar. Imagens de arquivo foram gentilmente cedidas pela própria TV Record por meio de visitações à sede da emissora, em São Paulo, pelos jovens cineastas, auxiliados pelo produtor executivo Maurício Andrade Ramos.

Eventos de incomparável magnitude nos anais da primeira arte e da televisão no Brasil, os festivais organizados e transmitidos ao vivo pela Excelsior, Globo, TV Rio e a mola-mestra Record alcançaram uma audiência sem precedentes entre a segunda metade da década de 1960 e os primeiros anos do decênio subsequente. O período compreendido entre 1965 e 1972, a “era de ouro dos festivais”, consagrou intérpretes que instantaneamente se transformariam em unanimidades nacionais, como Elis Regina, Gal Costa, Jair Rodrigues, Nara Leão, Milton Nascimento, Geraldo Vandré, entre outros, além do famigerado quinteto participante da grande final da terceira edição do 3º Festival de MPB. De acordo com os roteiristas Bia Braune e Rixa, autores do Almanaque da TV, “uma finalíssima poderia ser comparada à decisão de uma Copa do Mundo”, ou seja, a decisão de um festival teve um inacreditável sabor de campeonato de futebol.

Uma noite em 67 não se restringe ao enfoque da emblemática e nostálgica noite em que mudou em definitivo os rumos da MPB. Convence-nos compreensivelmente a mergulhar pelo contexto histórico de um ano marcado pela atuação persistente da juventude rebelde difundindo seus ideais de liberdade, paz e amor por um mundo melhor. Baseado nesse conceito, o 3º Festival de MPB alavancou, além da hegemonia televisiva na transmissão de congêneres, uma mudança no comportamento dos jovens, como fica evidenciado na hipnótica indumentária de alguns músicos presentes no palco, caso de Caetano Veloso. Ao interpretar o contestatório hino Alegria, alegria, quarta colocada, o baiano, então com seus joviais 25 anos, usou um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê laranja-vivo.

Gilberto Gil, antagonicamente, era adepto confesso do regionalismo e, em consequência, das raízes da MPB, explicitadas na música Domingo no parque, a vice-campeã. Seu conterrâneo e amigo Caetano lhe aconselhou a incluir no arranjo os três integrantes do ainda desconhecido grupo Os Mutantes – Rita Lee e os irmãos Arnaldo Baptista, namorado de Rita na oportunidade, e Sérgio Dias – influenciado pelo rock progressivo. Surgiu, com essa mistura de ritmos, signos e poéticas, o embrião de um movimento revolucionário em nosso cenário cultural, o Tropicalismo, embasado no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade (O arranjador de Domingo no parque no festival era ninguém menos que o maestro Rogério Duprat, um dos próceres da colorida e entusiástica manifestação). “Quando eu vejo as imagens hoje, não fico admirado de que as imagens não tivessem gravado na verdade um fantasma, o que eu era no momento ali no palco”, declara Gil, sorridente, relembrando a sua apresentação.

As hostilidades entre os dois jovens baianos, de imediato, acabaram sendo conciliadas no palco do Teatro Paramount a partir do auxílio luxuoso dos Mutantes, por recomendação de Caetano. Por isso, Gil ponderou no documentário que não queria brigar com seu companheiro meses antes do festival, após uma conservadora passeata contra a guitarra elétrica promovida pela TV Record no centro de São Paulo. A esdrúxula mobilização idealizada pela emissora, que veridicamente era mera estratégia de marketing, intencionava o protesto contra um singelo emblema da preponderância estrangeira sobre a cultura nacional. “Sempre quis compartilhar, somar, e não dividir”, justifica o ex-ministro da Cultura. Foi assim que, após hesitações de Gil em integrar o movimento liderado por Caetano, a amizade entre eles foi selada na instância da arte.

Vaias ensurdecedoras impediram Sérgio Ricardo de concluir a entonação da sua canção bossa-novista Beto bom de bola, o que lhe fez perder a paciência e ficar transtornado. Depois, Sérgio atirou seu violão no banquinho de madeira onde estava sentado, contra a plateia, e abandonou o palco. Consequentemente, a música foi desclassificada justamente pelas provocações do público, através de um comunicado da direção da TV Record, pronunciado aos jurados pelo apresentador Blota Jr., excluindo-a da lista dos cinco vencedores do concurso. Ele reaparece, nos extras de Uma noite em 67, cantando, ao piano, Beto bom de bola, com uma nova harmonia que, no entanto, é duvidosa. Segundo Paulo Machado de Carvalho Filho, o Paulinho, diretor da emissora na época, falecido no último dia 14, era impossível admitir um desrespeito ao público em termos de espetáculo, como destruir um instrumento.

Em companhia com a cantora niteroiense Marília Medalha, Edu Lobo cantou Ponteio, maravilhosa parceria entre ele e o poeta baiano José Carlos Capinan, logo depois um dos artífices tropicalistas. A ideia da composição, grande vencedora do 3º Festival de MPB, surgiu quando Edu ficou fascinado com a melodia de O cantador, do seu amigo Dori Caymmi, antes de a canção ganhar letra de Nelson Motta. Inicialmente, Edu esboçou um refrão, inspirado na letra de O cantador. No lugar dos versos que Nelson havia escrito, "Ah, sou cantador/ Canto a vida e a morte/ Canto o amor", ele escreveu "Ah, quem dera agora/ Eu tivesse a viola/ Pra cantar". O mote, então, fixou na cabeça do compositor, que convidou Capinan para desenvolver a letra. Ponteio, o título da canção campeã do triunfante concurso, nascida horas antes da sua inscrição, foi extraído de um caderno com uma relação de prováveis nomes de músicas anotados por Edu.

Muito além das esplendorosas apresentações dos cantores, Uma noite em 67 traz, de quebra, entrevistas nos bastidores do festival, concedidas pelos repórteres Randal Juliano, Cidinha Campos e Reali Júnior. Numa delas, Randal perguntou a Caetano o que significa o termo “pop”, mas o entrevistador não entendeu a resposta do cantor por tratar-se de um neologismo. Traz, ainda, depoimentos de todos os colaboradores daquela noite de gala, a começar por Chico, Caetano, Gil, Edu, Roberto Carlos e do desclassificado Sérgio Ricardo; passando por membros do júri como o poeta Ferreira Gullar e o jornalista Sérgio Cabral, pai do atual governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral Filho; do técnico de som do evento Zuza Homem de Mello, hoje um dos magníficos críticos de música, e de Solano Ribeiro, inventor e diretor dos festivais da MPB da Record. Artistas coadjuvantes também relembraram o episódio, como Marília Medalha e o quarteto vocal MPB-4, que acompanhou Chico em Roda viva.

Rememorar e dissecar uma final fantástica do espetáculo que arquitetou e delineou o atual arcabouço da MPB está fazendo germinar, 43 anos mais tarde, uma nova leva de cultuadores e saudosistas não somente daquele dia, mas, em nível global, de uma geração radicalmente mutante. Esse é o papel crucial de Uma noite em 67, genial fonte audiovisual de pesquisa e informação sobre os melhores – e conturbados – momentos do majestoso festival responsável por pacificar as dualidades existentes entre a modernização e a obsolescência, ou, conforme Caetano, em sua Tropicália, deslumbrante obra-prima do Tropicalismo, a “bossa” e a “palhoça”. Os pragmatismos conflituosos entre o novo e o velho, o moderno e o arcaico, o progressista e o conservador, desde então, começaram a se dissipar. Juntando compositores, intérpretes e músicos de diferentes estéticas e ambições, o 3º Festival é um vitorioso marco de referência entre épocas distintas da hoje variegada Música Popular Brasileira.

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