Anos 90 começaram com incertezas

Marcado pelo confisco monetário proposto por Collor e pela eliminação da seleção na Copa logo nas oitavas, primeiro ano da década era medíocre para os brasileiros

O ano de 1990, além de inaugurar o decênio caracterizado pelo neoliberalismo e pela globalização, presenciou dois grandes aspectos negativos e abomináveis para o Brasil: a ascensão de um jovem e representante da oligarquia alagoana – Fernando Collor de Mello – à Presidência, e a derrota precoce da nossa seleção de futebol na Copa do Mundo da Itália. Foram acontecimentos lastimáveis para o povo brasileiro, que no ano anterior havia retornado às urnas para eleger seu novo líder após 25 anos de imposição por meio do mecanismo do voto indireto.

Associada aos acontecimentos incertos do governo de um desconhecido sujeito, com aparência de novo-rico, a campanha canarinha na Copa disputada no ano em que ele assumiu o Planalto, com apenas quatro gols, marcados por no mínimo dois atacantes, era praticamente péssima. Portanto, o primeiro ano da década que revolucionou nossos costumes era, para nós, o ano da mediocridade. Lágrimas de completas frustrações atingiram aqueles que Collor, por ironia do destino, apelidavam de "descamisados".

Desconhecido pela maioria do eleitorado durante as primeiras estatísticas para o pleito de 1989, o ex-prefeito biônico de Maceió, ex-deputado federal malufista e ex-governador de Alagoas, candidatando-se por um partido nanico de aluguel, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN), logo assumia a dianteira, deixando para trás antigas figuras conhecidas dos eleitores.

Segundo o historiador Mário Schmidt, em seu livro Nova História Crítica do Brasil, Fernando, neto do gaúcho Lindolfo Collor (1890-1942), indicado por Getúlio Vargas em 1930 para ser o primeiro titular do Ministério do Trabalho, e filho de Arnon de Mello (1911-1983), empresário e tradicional político alagoano, "arrebatou o país com a imagem de que era novo na vida política nacional". Seu maior adversário era o então deputado federal Luiz Inácio Lula da Silva, ex-dirigente sindical e prócer do Partido dos Trabalhadores. Amparado e beneficiado com plenitude pelos maiores conglomerados de comunicação brasileiros, principalmente a Rede Globo de Televisão, o "caçador de marajás" combatia com audácia a estrela maior da classe operária.

Protetor dos "descamisados"

Por trás da ilusória promessa de que o Brasil seria um país "novo", "moderno", e que exterminaria a crescente inflação, fruto do insucesso dos planos econômicos implantados no impopular governo de José Sarney, havia o amplo apoio de forças conservadoras – a burguesia e os latifundiários – a Collor. Os principais postulantes progressistas ao cargo supremo da nação – Lula e o ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, Leonel Brizola (PDT), defenderam, obstinadamente, profundas reformas econômicas e sociais.

Mas no primeiro turno, em 15 de novembro de 1989, data comemorativa do Centenário da Proclamação da República, os paradoxos ideológicos entre a direita e a esquerda, a burguesia e o proletariado, o capital e o trabalho, o lucro e o salário, o senhor e o servidor, o dominante e o dominado, foram mais explícitos: Collor e Lula se confrontariam na etapa seguinte, obedecendo à Constituição de 1988. Pela primeira vez, segundo a nova Carta, as eleições passaram a ser divididas em dois turnos se o primeiro colocado não alcançar a maioria absoluta. Collor acabou vencendo Lula, em disputa acirrada, no segundo turno, em 17 de dezembro.

O precursor das doutrinas neoliberais em terras brasileiras, autoproclamando-se protetor dos "descamisados" e dos "pés-descalços" – numa clara alusão ao ex-presidente argentino Juan Domingo Perón –, conseguiu passaporte ao Planalto graças, além do suporte que as Organizações Globo lhe concedeu, à rearticulação dos setores políticos, econômicos e sociais conservadores.

Direita que, numa frente ampla articulada no segundo turno em torno de Collor, pertencente a uma legenda pequena, até então encontrava-se fragmentada desde a vitória de Tancredo Neves (PMDB), último eleito pelo Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985. Aderiram ao carisma do playboy com feições atléticas e juvenis, entre outras agremiações, o PFL de Antônio Carlos Magalhães, Aureliano Chaves (derrotado no primeiro turno), Marco Maciel e Jorge Bornhausen e o PDS de Paulo Maluf (que também não chegou ao segundo turno) e Delfim Netto, além da ala conservadora do PMDB.

Toda a população ficou bastante perplexa (para quem votou em Collor) e indignada (para quem sufragou Lula) em razão do confisco esquizofrênico e fulminante das cadernetas de poupança, posto em prática pelo Plano Collor. Coordenado pela então ministra da Economia, Fazenda e Planejamento – nova roupagem ao antigo Ministério da Fazenda –, Zélia Cardoso de Mello, o novo paradigma econômico começou a vigorar em 16 de março de 1990, um dia após a assunção do presidente que o homenageou.

Mudava a moeda nacional que circulava até então, o cruzado novo (NCz$), instituído em janeiro de 1989, penúltimo ano do governo Sarney, pelo velho e desgastado cruzeiro (Cr$), estabelecendo a equivalência entre elas (Cr$ 1 = NCz$ 1). Duas vezes antes, o cruzeiro já havia sido a nossa unidade monetária: de 1942, substituindo o mil-réis, em circulação desde o Período Colonial, até 1967, quando a inflação o substituiu pelo cruzeiro novo (NCr$); e de 1970, substituindo o cruzeiro novo sem nenhum corte de zero, a 1986, ao ser ocupado pelo cruzado (Cz$) em virtude da espiral inflacionária.

As consequências do Plano Brasil Novo, como o Plano Collor era oficialmente conhecido, revelavam um desastre fantasmagórico em todas as instâncias. Dentre elas, a economia e a sociedade foram seriamente prejudicadas, com o confisco, o aprofundamento dos indicadores inflacionários e o empobrecimento de grande parcela das classes populares. Para Brizola, um dos liquidados em 1989, a culpada pelo crescimento da crise foi "a mesma gente, que vem desde 64, passou pelo governo Sarney e agora está toda ela no novo governo (o de Collor)", certificando a permanência de pessoas vinculadas ao regime militar na nova administração.

"Mas o que é grave, que nós vamos evitar, é que ele (o plano) contém dispositivos, regras, uma legalidade perversa que propõe contra os destinos e contra a soberania do nosso país, que é a entrega do patrimônio nacional, que é a abertura do nosso país a um processo escandaloso de collorização", denunciou a golpes de argumento o líder trabalhista, que voltaria a ser releito para o governo do Rio ainda no mesmo ano do Plano Collor.

A era Lazaroni: adeus

No comando da seleção com vistas à Copa de 1990, estava o técnico fluminense Sebastião Lazaroni, indicado por Ricardo Teixeira, novo presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que fora campeão da Copa América no ano anterior, disputada no Brasil. Ele escalava, para o time titular ao disputar o torneio na Itália, em junho – três meses após a posse de Fernando Collor –, atletas cuja maioria possuíam desempenho débil, tanto que aquele time era considerado o mais medíocre em todas as Copas.

O objetivo de Lazaroni e seus discípulos, como Dunga – que vinte anos mais tarde treinaria o esquadrão canarinho na África do Sul, sendo eliminado pela Holanda nas quartas de final –, era tentar, pela quinta e penúltima vez, o tetracampeonato mundial após 1970, quando sagrou-se tricampeão no México. Todos os quatro jogos da seleção brasileira foram realizados no Estádio Delle Alpi, em Turim, nos Alpes italianos.

Estreando com vitória de 2 a 1 sobre a Suécia, em 10 de junho, com gols do atacante Careca, egresso do São Paulo e à época atuando no Napoli, o esquadrão de ouro, jogando mal, venceu de forma tímida mais dois lances ainda na primeira fase. Müller, outro atacante ex-são-paulino e que atuava no Torino, marcou apenas um gol contra as fracas seleções da Costa Rica – cuja escalação tinha destaque para o brasileiro naturalizado costarriquenho Alexandre Guimarães –, em 16 do mesmo mês, e da Escócia, no dia 20.

Os débeis resultados e atuações, especialmente a predominância de jogadores mal-sucedidos, como Careca, Alemão, Silas, Mozer e Bismarck, demonstravam que a performance, a disposição e a credibilidade da nossa equipe estavam se declinando gradualmente. A etapa inicial da competição terminou com Careca e Müller sendo artilheiros do Brasil, com dois gols cada – uma média inexpressiva. Faltava criatividade, obstinação, pique, ânimo, energia, bom senso e vontade para enfrentar os próximos adversários e conquistar o inédito quarto título de futebol. Mas, ironicamente, só viria quatro anos depois...

O primeiro e único desafio nas etapas eliminatórias resumiu-se à maior rivalidade sul-americana. Num duelo complicadíssimo, em 24 de junho, os brasileiros foram desclassificados logo nas oitavas de final pelos vizinhos argentinos, campeões mundiais à época, com seu segundo título obtido em 1986, no México. Diego Maradona, capitão da Argentina na emocionante campanha do bi, passou livremente para seu compatriota Claudio Caniggia marcar o gol da vitória dos hermanos por apenas 1 a 0, aos 35 minutos do segundo tempo, boicotando a defesa brasileira, com Taffarel à frente.

Quatro minutos depois, Sebastião Lazaroni substituiu Mauro Galvão e Alemão por Silas e Renato Gaúcho, atualmente treinando o Bahia, respectivamente. O zagueiro e capitão Ricardo Gomes, hoje técnico do São Paulo, foi expulso da partida em seguida pelo árbitro francês Joël Quiniou. Com esse placar decepcionante, os canarinhos foram para casa mais cedo, adiando para 1994 o antigo sonho da busca pelo tetra, que seria concretizado nos Estados Unidos com a colaboração, entre outros da insossa trupe de 90, de Taffarel, Dunga, Jorginho, Branco, Bebeto, Romário, Müller e Ricardo Rocha.

Lazaroni, demitido imediatamente depois de seu último certame, escalou o time-base que se responsabilizava pela derrota. Improvisando várias chances de vitória, a equipe que estava em campo era integrada pelos seguintes atletas: o goleiro Taffarel, o lateral-direito Jorginho, os zagueiros Mauro Galvão (cartão amarelo), Ricardo Rocha (cartão amarelo) e Ricardo Gomes (cartão vermelho) e o lateral-esquerdo Branco; os meias Dunga, Alemão e Valdo; e os atacantes Müller e Careca. Os reservas foram os goleiros Acácio e Zé Carlos; o lateral-esquerdo Mazinho; os zagueiros Mozer e Aldair; os meias Bismarck, Silas (que substituiu Mauro Galvão na partida fatídica) e Tita; e os atacantes Romário, Bebeto e Renato Gaúcho (substituindo Alemão).

Não conseguimos papar tudo

Quase todas as emissoras de TV transmitiam, em rede nacional, a décima quarta edição da maior competição esportiva internacional, inclusive a Rede Globo, que contribuiu decisivamente na eleição do então presidente Collor, intervindo no primeiro pleito democrático em nível nacional após 29 anos. A narração das quatro partidas do Brasil coube a Galvão Bueno, cuja competente eloquência e simpatia fascinam milhões de telespectadores por todo o território nacional.

Apesar de a seleção brasileira de 1990 ser medíocre e a Copa daquele ano também ser a pior entre todos os torneios, detendo a menor média de gols e jogos, a Globo pôs no ar um tema musical especialmente elaborado para a ocasião. De autoria da prestigiada dupla Michael Sullivan e Paulo Massadas, que haviam composto Mexe coração para a transmissão global da Copa de 1986, a despretensiosa e pouco célebre marchinha Papa essa, Brasil foi o tema da frustração geral do nosso povo, corroído com os sintomas gerados pelo Plano Collor. (Veja a letra e o vídeo abaixo)

Estamos juntos outra vez
O mesmo sonho, outra vez
A mesma raça, outra vez
Dessa vez tem que ser pra valer

Vai ser agora, quero ver
Chegou a hora de torcer
Tocar a bola e correr
Tudo é festa e esperança outra vez

Camisa doze é o teu, é o meu coração
Dessa vez vamos lá, seleção
Meu Brasil campeão
Tudo de novo, novo

Cruzar na área
Nesse jogo eu também quero entrar
E no gol de alegria chorar
Vamos todos gritar
BRASIL, BRASIL, BRASIL!

Papa essa, Brasil
Papa essa, Brasil
Pode vir quente
Se der sopa, a gente toma

Papa essa, Brasil
Papa essa, Brasil
Vai nessa bola
Quem tem bola, vai a Roma



Contrastando-se com a previsão de vitórias mencionada não somente na letra da canção, mas também no videoclipe específico que a Globo lançou em dezembro de 1989 (acima), cujas imagens misturam os principais cartões-postais italianos com os jogos do Brasil na Copa América daquele ano, a nossa seleção teve um desempenho tão medíocre e tão pífio em todas as partidas.

Pena que ela não teve coragem de papar logo os hermanos, que acabaram sendo vice-campeões (a campeã era a então Alemanha Ocidental, com seu terceiro título) nem ir à final em Roma, pois Careca, Müller e companhia desperdiçaram diversas probabilidades do início ao fim do fatídico jogo nas oitavas de final. Infelizmente, Caniggia, o carrasco da eliminação precoce do Brasil, decidiu papá-lo com voracidade nos últimos minutos, e a nação, politicamente comandada por Collor, que renunciaria dois anos depois por escândalos de corrupção, foi às lágrimas. Veio mais uma derrota, desta vez nos gramados, bem pior do que a derrota de Lula nas urnas.

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